segunda-feira, dezembro 19, 2005

Tardar é sempre tão desagradável como mágnifico


Sou da oposição.

Sou do contra.
Sou o que só diz “não”.
- “A princípio opta-se por detestar e desprezar todos os poetas convictos e todos os filósofos convictos e todas as convicções mundanas e que mais não são do que impulsos para a “tagarelice” e há já tão poucos sentimentos e isto agora é só politica e que chatice sermos todos meros poetas, e todos que apregoando e fabricando falsas afeições nos tornamos, num ápice, falsos heróis e escritores de esquina, sofistas de barba curtinha."
Já não penso nisso.
Mas sou do contra.
Sou da oposição.
Portanto sou também escritor de esquina.
Também falso.
Tudo isso.
Mas ostento o luxo da simpatia. E verdade é que simpatizo comigo.
Porque tudo o que sou serve para algum engenho e é, ao mesmo tempo, um veneno medicado.
Sou dos que ostentam também o exagero, ou como se diz em bom estrangeiro, “ over reacting “.
Sou do contra.


domingo, novembro 13, 2005

Entre a pausa de " Atiremo-nos de Cabeça" o resto da maneira como observo o Mundo continua...

 Lembro-me de qantas coisas foram uma delícia porque tive e tenho a cabeça a circular em volta de lanças, donzelas e gigantes que são moinhos, ou moinhos que são gigantes.
Quantos “vou” e “não vou” ficaram só pelo gosto e desejo de enfrentar os meus distintos medos que são tão próprios do estar velho e só, como se quisesse escrever cartas de despedida?
Será o espaço marcado e demarcado pela presença de um ilusório terreno de conquista?
Meu coração!
Quantos batimentos aflitos te restam?
Quais são os que prestam?
Quantos bafos te restam dos que prestam?
Por quem te derrubas ou vences?
Por quem dormitas e te excitas?
Quem são afinal os gigantes por quem te precipitas?
Quantas mais alucinações habitam o teu imediato, meu coração?
Serei eu mil personagens?
Mil maneiras de te sentir?
Não sequer tenho olhos tristes de mau cavaleiro derrotado, a batalhas obrigado. Eu luto porque vivo, e lutando conquisto a liberdade de poder ser quem eu quero ser. A minha vida é esta. Lutar e sonhar.
Portanto…
Portanto e contudo…
Finalmente te encontro desequilibrado, meu coração, como se fosse só a morte a origem de todas as desgraças.
Que força existe para além da tua, coração?
Olhos que contemplam Dulcineias, cabeça e mãos que te suportam?
Que pés e loucuras te movimentam se és só instrumento de corpo, pequeno rocinante ou peça de armadura insuficiente?
Até quando?
Até onde irás sem ser Dom Quixote?
Até onde?
Pega em armas e cavalo e apressa-te a ver o que ninguém mais consegue ver.
Será que hoje te inventei triste, meu coração?
Ou és já um manifesto do que te faltaria de bom cavaleiro?

sábado, novembro 12, 2005

O que faz falta

De Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Lisbon Revisited
-l923

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

quarta-feira, outubro 26, 2005

"Atiremo-nos de Cabeça" - Capitulo IV

Pensão Palatino

A viagem não havia sido de todo memorável. Mas o comboio estava agora a apaziguar a velocidade, o que queria dizer que estava a segundos de Santiago de Medo.
Duas vezes apitou até parar definitivamente. Eu encaminhei-me para a porta, abri-a e mirei aquela nova paisagem como um descobrimento, um desconhecido que era. - Embora. Toca a descer – disse-me o senhor a quem, no interior do comboio, eu tinha comprado o bilhete, com ar apreensivo - É sempre a mesma coisa. Fazem-se de parvos a ver se a gente se distrai para ir mais longe. Mas a gente já os conhece a todos. E lá insistiu ele mais uma vez, mas mais irado ainda. - Vamos embora pá! Tem falta de ouvido ou quê? – apontando para mim – sim, sim. É consigo que estou a falar. - O senhor conhece o destino para o qual comprei este bilhete? – perguntei-lhe,disposto a reprimir-lhe pela sua falta de respeito para comigo. - Conheço o destino do seu bilhete e conheço também a espécie de gente a que pertence. Meliantes e parasitas que se aproveitam da inocência das pessoas. – fungando. Segundos depois oiço um cão ladrar no interior do comboio e a locomotiva arranca lentamente até ganhar velocidade.
























O dia começava agora a escurecer no lado oposto do pôr-do-sol e eu tinha de procurar um lugar para descansar o corpo fatigado antes que anoitecesse. Depois de fazer uma pequena vistoria pelas ruas de Santiago de Medo, pois a noite começava a cumprimentar-me, dei de caras com uma enorme casa em avançado estado de degradação onde se podia ler à entrada, Pensão Palatino. Para além das peças de roupa que dançavam numa espécie de estendal, havia uma rapariga de cabelo ruivo sentada no parapeito da janela. Uma das pernas estava na parte de dentro daquele quarto ou sala ou cozinha, não se percebia bem, enquanto a outra se balanceava para o exterior de forma convidativa. De momento não quis saber do efeito que aquela figura retrato surtia nos outros que por ali passavam, mas em mim havia produzido uma convocação apetecível. Entrei um pouco hesitante coisa que se percebia pelo lento caminhar das pernas e do ritmo cardíaco. À entrada havia um cão um tanto rafeiro que me mirava ensonado. Ainda chegou a levantar-se para me vir fiscalizar mas voltou a deitar-se antes de passar completamente pelo tapete. Reparei que havia cortinas em vez de portas nas duas entradas diante de mim. Ouvi passos numa qualquer direcção, imperceptível no momento presente. Segundos depois o som dos passos aumentara e uma das cortinas, a da porta ao meu lado esquerdo, moveu-se graciosamente. Recuei um pouco e o cão rafeiro ladrou abundantemente na minha direcção. Fez-se ouvir o som de um espanta espíritos e uma imagem feminina surgiu de entre a dança das cortinas. Uma túnica de fina seda envolvendo um corpo bem definido de traços e um rosto de leve acastanhado. Uma verdadeira musa de olhos e cabelos pretos. Na boca, o tom avermelhado dos lábios misturava-se com a cor das cortinas. Era sem duvida a rapariga da janela. Aproximei-me sem hesitar um momento que fosse. Mostrei-lhe a carta que havia guardado no bolso do meu casaco de noivado. E queria não tê-lo feito, mas fiz. Senti-me ridículo com aquele gesto, quase mendigo. Porque razão estaria eu a mostrar-lhe a carta? O que se estaria a passar comigo naquele momento? Ela leu-a e riu-se, primeiro. Depois ri-me eu, ou sorri, já não me lembro, e por fim rimos os dois como se ríssemos de uma parte da minha vida em que eu era um cómico apaixonado por tudo. Não sei bem do que ria mas enquanto me ria esquecia os trezentos e sessenta e cinco dias vezes dez que havia ficado desocupado de todo o interesse da vida. Pensava agora que o mais importante não é saber onde está qualquer coisa, mas sim procurar. Havia uma despreocupação útil na disposição do que queríamos. - Incrível o que acontece nestes dias e depois de tanto tempo. – disse-lhe. Subimos as escadas daquela pensão sem sequer trocarmos os nossos nomes e sem sabermos se nos esperava uma cama feita para o amor ou se nos atiraríamos da janela daquele primeiro andar.


"Atiremo-nos de Cabeça" - Capitulo III


Viajando fora e dentro da cabeça




Passaram já dez anos. Na manhã de ontem recebi uma carta de Ana de Chá. Senti-me inerte e incomodado ao lê-la, por ser uma carta curta e por ser uma mensagem infalível. Dizia simplesmente – “ Vem ter comigo. Não me perguntes onde estou. Procura-me.” Junto enviava uma foto supostamente recente e incrivelmente bela do seu rosto. Talvez o dia de hoje tenha sido impertinente pelo sentimento de indecisão que perdura desde ontem no meu estado de alma, talvez por ter tomado hoje a decisão antecipada de partir amanhã não sei bem para onde. Talvez por ter decidido que encontraria alguém parecido com a senhora princesa. Mesmo que o seu nome não seja Ana de Chá ficarei à espreita de poder torná-la numa aspirante ao meu coração. Partirei amanhã por volta da meia-noite que é quando ninguém faz noitada. À meia-noite e no meio de um sonho estarei já quase de partida. Não levo milhões de pedras para o sítio onde vou mas é como se as levasse. Vesti propositadamente o meu casaco de noivado. Sinto-me pesado mesmo sem a bagagem. Ah! Deve ser a cabeça. Provavelmente chove lá dentro. Provavelmente há lá uma grande inundação. Provavelmente estarei azul amanhã por ser a consequência dos dias de tempestade. Atraso-me sempre. É-me difícil não o fazer. Mas hoje, excepcionalmente, estou já quase na estação de comboios. Talvez o desmedido comboio, o das vinte carruagens, me aguarde e me guarde lá um lugar ao lado da locomotiva. - Afinal sempre veio. – dizem alguns transeuntes apressados – Está lá ao fundo parado, não se vê logo? Avisto-o ao longe, daqui da rua flutuante, e sou só um passageiro que não quer perder a jornada, tal como a humanidade toda, e a gente toda, e a pressa toda. E apesar do peso da cabeça ou do medo do arrependimento, viajo. Chego a tempo, à pequena estação de comboios de Santiago de Árvore. Compro bilhete para Santiago de Medo. Corro em marcha apressada ao ritmo de uma conhecida campainha, som, ruído de “ pouca terra, muita terra “. Chego e piso o primeiro degrau, calcando-o com firmeza, colando os cinco dedos da mão apurada num trinco regulado. - O comboio para Santiago de Medo é o da linha dois - dizem-me. Depois lá me explicam que está atrasado. Uma hora de atraso é um contentamento de excepção. - Falta-lhe o vapor – apregoa-se no intuito de acalmar a gentalha. Já que assim é, para nada me serve este comboio para onde entrei apressado e erradamente. Inclino a cabeça e vejo o comboio da linha dois através da janela deste outro comboio. Falta-lhe o vapor, sem dúvida. Recuo conforme o meu corpo me permite. Há pessoas sentadas à espera do seu destino, observo. Olham-se por dentro, comem jornais e revistas sensacionalistas, e gostam ao que percebo pelas suas caretas. Eu vou à Praça Canalha porque fica perto. É lá que tenho agora descanso. Digo que já volto, como que se a importância que dou a isso fosse a da perda de uma viagem. Talvez pense nisso mais tarde. Agora só me resta distorcer o que digo, não dando, nem querendo perceber que tudo o que faço e digo gira em redor da mulher princesa que quero encontrar. Disse mulher princesa por achar que Ana de Chá é pessoa que se procure mas não pessoa que se ache por ai. Espero vivamente que ela seja alguém que resistindo e não me resistindo, não me deixe agora, logo de início, como um passageiro pesado, passado e obrigado a viajar na casualidade. - Boa viagem Tommyhann – penso em estado de mudez para mim. Houve dias em que tu, Ana de Chá, também estavas de viagem e eu, imaginando-me como simpático revisor de comboios de viagens pesadas e passadas, não te cobrei bilhete. Apagar-te? Não te levar na bagagem? Não! Tenho-te já cá dentro e é por ti este desassossego. - Boa viagem Tommyhann. - e de súbito o mundo fica diferente, mais vazio de formas e de contextos, mas mais apinhado de aspirações. Não porque me tenha desviado de todos os meus sentidos e sentimentos para te encontrar mas porque a minha vida é agora uma viagem sem endereço. - Atenção senhores passageiros. O comboio estacionado na linha dois que esteve parado, ou atrasado por uma hora, parte daqui a quinze minutos e tem como destino, Santiago de Medo. Nunca tinha percebido o quão dormente é a vida quando se espia a existência arredado dos sons. Para mim, antes de aqui estar verdadeiramente, esta estação era apenas uma estação insustentável de corridas e de viagens e sem passagens. Os comboios passavam lentamente mas nunca paravam, era a minha ideia. Abrandavam, passeavam mas nunca paravam. Trezentos e sessenta e cinco dias vezes dez desde o último chá e desde o último abraço. Atrás desse tempo, eu voava nestes comboios, mas sempre no divã da minha cama, manipulava-os como um Dom Maldade que nunca conheci, cavalgava-os por meio de um tão meu amigo Dom Quixote, personagem vivo nos meus sonhos. Dormia nestes comboios, vadiava de carruagem em carruagem até ter percebido, agora, que aqui de perto é melhor. Parece-me neste momento que todo o meu sofrimento se reduz a não ter onde guardar tantas memórias. Todas estas coisas relacionadas com a insónia são só tragédia, só remorso e só medo, e tudo num tempo que lhes pertence e que não é este “agora”. Se ao menos eu tivesse percebido antes da tua carta que na intelectualidade se morre, saberia que todo o amor só é possível se for Arte. É no amor eterno que te guardo Ana de Chá. É lá que tudo se modifica e é lá que tudo é possível ao amor. Tudo. Até a monotonia do “ não existir “. Para que me serve uma cadeira se não me posso sentar no seu descanso, ou sentado ignorar que me anseias e me entristeces já, ou ainda pensar que me amas tão desalmadamente. É para isso que todo o meu espírito existe. E o Dom Maldade deve de certo viver em tamanha distância. Que agonia! Quando partirá o comboio? Enquanto sonho, nenhuma linha-férrea pertence ao comboio da minha viagem. Ao menos acordado sei que há coisas que se transformam em função dos meus desejos simples. Se em vez de um comboio fosse um navio! Mas nenhum navio chegou ainda para me desamarrar desta música estática, deste pensamento entre o que procuro e o que irei conquistar. O nítido atropelo dos dias ou das horas é hipnótico. Desmancha-me cada osso do corpo, e dói-me. Há sempre um momento final em que me dói, muitíssimo. Canso-me na espera, afagando em emudecimento a dor deste impotente estado de coração. Vivo na certeza de que daqui a nada um comboio deixará de se atrasar e virá por mim. E tranquilamente entrarei nele, “ensorrisado”, enorme e feliz para te procurar, Ana de Chá. Tantos sonhos. Junto-os e amasso-os com excitação. Sou um relâmpago de criação depois da carta da vida. Vejo o comboio a aproximar-se. E irei pisar cada degrau na mesma firmeza inicial, de dedos curiosos no corrimão, e a desejar que a vida se repita como hoje em todas aquelas insónias. Enquanto estive parado, estive. Sem talento e sem descoberta. Tão insuportável como imprudente na minha própria ausência, fraseando em suspiros alucinados, - “ Volta mulher princesa “. Cada manhã desse tempo era pálida na espreita de um comboio, até eu conceber a ideia de que nada é fácil sem o encanto das conversas tuas. Era tão difícil não ter o que é bom de se ter. Sequer egoísta sou. Sei que não, ou não amaria a concepção desta partida. O tempo passa em grande cuidado. Morosamente. E eu entro no comboio a que chamo vida para te procurar, quem quer que sejas, pensava eu. Momentos depois o comboio ganha velocidade e eu adormeço como se fosse o sono um experiência nova.

segunda-feira, outubro 24, 2005

"Atiremo-nos de Cabeça" - Capitulo II


Reminiscência





Não é nada tonificante esta rotina despendida entre andar de cá para lá e horas a fio no café Profeta, esse café que, começo a entender presentemente, é habitado pelas mais ilustres heart Stiller’s, ou como se diz em bom português, usurpadoras de corações, o género de mulheres princesas que nos prendem para sempre aos seus encantos.

E agora sim! Cheguei finalmente ao que importa contar.

Em tempos conheci nesse café uma dessas mulheres princesas e nunca mais lá voltei. A partir desse dia, essa mulher, jovem ainda, dezoito anos, começou a visitar-me diariamente. Nessa altura a minha casa era elegantemente sedutora. O nome dessa senhora princesa era Ana de Chá. Sei-o agora, por cartas que recebi. Ana é Ana, mas Chá é nome estranho para pessoa, e ria-me muitas vezes no momento em que o pronunciava.
- Chá, como chá bebida quente? – e sorria sem dar-me conta do fascínio que apenas o nome me havia causado. Na altura havia sempre qualquer coisa que me impedia de questioná-la sobre o seu nome. Havia uma facilidade desmedida em falar-lhe de mim, de coisas ligadas a mim ou da maneira como eu via o mundo e as coisas nele presentes, mas nunca me ocorrera perguntar-lhe sobre aquele seu interesse súbito em mim. E desde manha cedo até dormir, porque nesse tempo eu dormia precipitadamente, eu redobrava a minha atenção dedicando-a a essa senhora princesa. Foi fácil apaixonar-me por ela. Assim acreditei nesse tempo. Ainda me interrogo sobre tanta coisa que pertence a esse tempo. Recordo-me da senhora Chá quando observo a ausência de imagens retrato na parede do meu dormitório. A senhora Chá desapareceu há uns longos dez anos. Nos meus sonhos pensados e acordados sonho infinitamente com os seus vestidos, com o cheiro que tinham, com os pormenores ou com as formas com que ela presenteava esses vestidos. Eram sempre os mais bonitos, e os mais admiráveis de todos, como ela dizia. E eu contemplava-os mesmo nas histórias desordenadas que ela me contava em tempos de visitas e de chás. Sabes, – disse-me na última noite que a vi –, há um espaço inatingível onde todos os seres representam a melhor imagem de si. E na imagem de cada um recriam aspirações e devaneios de um interior íntimo e distante de tudo o resto. E eu creio que isso é que é sonhar e creio que é o mais terno e genuíno gesto do “existir”. As madeiras da minha casa apertaram-se e as fendas por onde a corrente de ar entrava e por onde eu admirava muitas vezes a sombra de pessoas verdadeiramente magníficas, haviam-se tornado insignificantes perante aquele juízo de valor. Senti-me mais vigilante para o momento e acompanhei os seus movimentos como se estivesse interessado em que a sua prosa profética não acabasse. E enquanto ela entornava para pequenas chávenas o primeiro chá, as cortinas do meu quarto desamparado pereciam querer convidá-la para uma dança só de olhares. Era demasiado elegante para mim a postura perfilada do seu corpo. Sentia-me capaz de a envolver em mim, apertá-la no opaco do meu colo, convidá-la a abraços dançáveis mas, ao mesmo tempo, lamentava não poder conceber a mais simples palavra que fosse para lhe dizer que a estava a amar. Dos meus devaneios este fora o mais excêntrico e o mais apetecível. - E então? - perguntava-me eu no meu silêncio exercitando uma possível revelação – Será agora nesta casa onde a minha arte habita que o meu sentimento irá ser anunciado? Nestas alturas não sei falar. E não soube naquele momento aumentar o volume do meu pensamento até se ouvir no exterior de mim. A senhora princesinha olhou-me bem no fundo dos olhos parecendo ter-me percebido e, aquele instante, mínimo, foi o bastante para me derrotar de tudo. Fui incapaz de me compreender. - Queres chá, suponho. – Disse-me com um brilho admirável suportado pelos seus olhos. E nesse momento gerou-se no meu interior algo como a imagem de sonho que eu haveria querido para mim se a mim fosse concedido o direito de sonhar, se pudesse eu escolher ser o menos miserável dos seres em função do amor. Nesse momento preparei-me para me acusar num sincero manifesto de indizíveis sentimentos. E lentamente expressei-lhe ternamente o impossível de mim ou a transformação do que eu era naquele momento. - Amar-me-ias como eu a ti? Amar-me-ias só por que te declaro agora o meu evidente sentimento? - Amar-me-ias tu sem quereres saber o quanto te iludiria? – retorquiu ela surpreendida. - É já maior a firmeza que me acompanha para me revelar a ti. – disse-lhe hesitante e sentindo-me confuso - Não sei o que pensar e perdoa-me se te não minto. E foi ai que, enfim, me permiti falar sobre algo que até então estava pendurado no meu alento, mesmo na parte funda daquilo a que chamo coragem. - A divina estima que te guardo, penso-a a todo o momento. A divina estima do amor. Penso pouco no amor, ou passei a pensar mais agora que te conheci. Mas ainda não sei bem o que pensar do amor, e de certo me entendes tu melhor do que ninguém pois é por ti esta estima ou este amor ou não sei bem. Sem nunca perder o assombro pela sedução do seu magnífico olhar, ou todo o momento conjugado, eis que me havia surgido um rasgo de intervenção, um alento em todo aquele desespero de nunca me ter mostrado sobe a forma de apaixonado, considerava eu. Com a suavidade de um inocente fixei-a e, mais que isso, admirei-a, imerso no que havia dito. Percebi depois que em vão lhe havia dito tudo aquilo, que para mim, era o mais precioso e novo segredo que me habitava. - Parece-te óbvio tudo quanto te dou neste momento, nisso reparo. Porquê, então? – Perguntei numa voz cálida e mirando-a em sofrimento - Porquê tanta hesitação na tentativa do teu amor por mim? Acaso não te mostro disfarçadamente o quanto te quero? Parece-me que não sei ou me esqueci de como se sorri perante a pessoa que amo de amor à vida. Por isso me encontras mais sisudo recentemente. Primeiro duvidei que não me tivesse percebido, mas logo compreendi que afinal se assustara um pouco com tamanha investida do meu coração. - Porquê tanta hesitação na tentativa de te prenderes a mim? Nem uma palavra escuto já de ti. Ao menos um sorriso? – disse-lhe um pouco incomodado com o ridículo da minha figura. - Perguntas-me, e eu não te sei responder. Ao mesmo tempo sinto que sabes que poderia amar-te como coisa que nunca vi. Acreditas? Sei-o agora. Eu pensava nas suas primeiras visitas. Mas que poderia eu pensar da sua resposta? Que afinal também me amaria como eu a ela? Que estava disposta para mim? O meu pós pensamento, revelava o quanto eu temia de mim mesmo, o quanto eu duvidava do meu sentido de vida, o quanto eu não sabia de sentimentos de companhia. Pareceu-me assustada com o que me dissera e lentamente afastou-se de mim, levando um assento para junto da janela. Já não me observava como sempre o fizera e disse-me quase de forma imperceptível. - Temia este momento mas sabia que um dia me dirias todas estas coisas. Mas pior do que esse receio é o medo incalculável que tenho pelo que sinto por ti. Creio amar-te tanto que julgo não saber amar-te. Levou a chávena aos lábios e bebeu no chá o arrependimento de me ter visitado especialmente neste dia. Os vestidos deixaram de fazer sentido no seu corpo e teve dificuldade em conter-se na mostra de desalento e de descontentamento. Sentiu-se como se eu a pressionasse a cada segundo que passava e disse-me tristemente. - Sim Tommyhann! Amo-te mais que a mim. E sim Tommyhann! Parto amanhã para destino incerto. Havia algo de errado em todo aquele envolvimento e conversa. A casa toda ficara mais feia. As cortinas e até mesmo as madeiras desfaleceram, deixando a corrente de ar entrar pelas gretas, agora maiores. Olhei-a obstinado e num rasgo de desespero e raiva gritei para dentro de mim até não poder mais. Como se falasse com o meu coração, como se estivesse revoltado pela inércia do meu coração, e disse coisas confusas e atrapalhadas na esperança de que ele se manifestasse em meu socorro. Gritei até se ouvir cá fora. - Quantas coisas foram uma delícia? Quantas? Tive e tenho a cabeça a circular em volta de cigarros. Viciado no gesto elegante de segurá-los pelos cotovelos. Quantos “ vou “ e “ não vou “ ficaram só pelo gosto e desejo de te mandar cartas de despedida? Será o espaço marcado e demarcado pela presença de um ilusório terreno de conquista? – gritei deixando-me deprimir. Nesse momento baixei a cabeça envergonhado, julgando não mais a levantar. Mas sentia qualquer coisa que me impedia de ficar em silêncio. Receava ser a última visita ou o último encontro entre nós. - Meu coração! – continuei - Quantos batimentos aflitos te restam? Quais são os que prestam? Quantos bafos te restam dos que prestam? Por quem te precipitas? Por quem dormitas e te excitas? Quem é o teu regente? Quantas mais desistências habitam o teu imediato? Serei eu mil personagens, mil maneiras de te sentir? Não tenho olhos copiados, não tenho trabalhos forçados de mau anjo acordado e aos trabalhos obrigado. Portanto… - já sem fôlego. Retive por momentos toda aquela explosão de raiva momentânea e acalmei o meu estado de frustração perante o que se iria passar dali em diante. - Finalmente te encontro desequilibrado meu coração, como se fosse só a morte a origem de todas as desgraças. Que digo? Só barulho. Só entulho. Que força existe para além da tua, coração? Olhos, cabeça e relógio que te sustenta. Que pés te movimentam se és só instrumento de corpo, pequeno assobio ou peça de piano auto-suficiente? Até quanto? Até onde irás? Será que te inventei triste, ou és já um manifesto do que te faltaria de bom? A senhora princesinha olhava para fora da janela enquanto me ouvia, como se o que estivesse a ver fosse um retrato, um quadro convincente e perceptível de uma partida antecipada. Assim não teria de olhar bem na essência dos olhos e, obrigatoriamente, eu deixaria de falar daquela maneira, e ela não acrescentaria absolutamente mais nada. E fui cobarde. Portando não houve de mim outra investida a modo de arquitectar nova comunicação, ínfima que fosse, para lhe suplicar que fixasse. - Acaso estás prestes a deixar de me ouvir? – disse-lhe desesperado. Houve um silêncio repentino que me incomodou. Mas continuei - Nada se justifica já em função do amor, ou nada se motiva pelo que sinto por ti? Deixarei de te amar se isso favorecer a vontade que tenho de que não partas. Pois esses sonhos de que falavas de que me servem se me abandonas ou se partes para destino incerto. Virou-se inesperadamente, apertando a saliva entre os dentes e chorou, deixando cair a chávena de chá, encostando-se à parede de madeira, deslizando paulatinamente as costas do vestido, entregando-se ao chão de pinheiro. E ficou ali a soluçar, a saborear o “enlagrimado” choro que lhe descia dos olhos, misturado com a balancear das ondas que sacudiam a casa. Quando os olhos lhe secaram ela fintou-me, mais uma vez, no fundo da minha vista e, despedindo-se de mim de forma taciturna, afastou-se para a saída. Parou por um instante antes de assentar a mão no puxador da porta. Girou o corpo de soturna figura e avançou delicadamente sobre mim, abraçando-me! Sequer um beijo demos. Já nem me lembro de vê-la sair desta minha casa. Não sei bem porquê. Talvez queira apenas lembrar-me de algo bom, como foi o gosto do abraço.


sexta-feira, outubro 21, 2005

"Atiremo-nos de Cabeça " - Capitulo I


De Santiago de Árvore até Fragata


A mãe fazia sopa na cozinha húmida e fria enquanto os gatos se roçavam pelas suas pernas e os dois cães apanhavam uma sova pela terceira vez, esta tarde. - Coitados! - dizia Sara a minha irmã mais nova. Os cães estavam ali presos naquele pequeno cubículo sem telhado e nunca ninguém havia pensado que sofriam. A princípio aquele lugar era para ser uma cozinha mas nunca mais se colocou o tecto de telhas largas e cinzentas. Então acabaram por lhe dar outro fim. Agora era o sítio dos cães, tapado na entrada com uma porta que havia sido tirada do quarto da avó e que agora era dos pais, pois a avó morrera já há algum tempo. De vez em vez atirávamos comida lá para dentro pela parte de cima, a que não tinha tecto. Era sempre pouca comida. Às vezes os cães fugiam e iam para debaixo da nossa cama. Minha e dos meus irmãos porque era só uma. Quando tentávamos tirar os cães debaixo da cama com uma vassoura, ganiam tanto que pareciam estar a morrer. A minha irmã mais nova, Sara, chorava. Tinha pena deles porque se lembrava de quando estes eram pequenos e de como adorava tê-los no seu colo. Nessa altura fazia-lhes muitas festas. Sempre tivemos cães. Quando uns morriam, nós arranjávamos outros. Lembro-me constantemente, de todos os momentos daquela época. Lembro-me da cozinha nos dias de chuva, da mãe a correr da porta do quintal para a cozinha e lembro-me do som da chuva a bater nas telhas improvisadas de metal. Chovia dentro de casa quando a chuva se alongava, ou melhor, chovia na minha cama.


Neste momento, estamos no ano de todas as coisas possíveis serem realizadas, o que a princípio me incomoda. É o ano de 1983, o ano que abarca os panfletos de reconstituição política, as oficinas de reparação de automóveis, os estaleiros de barcos de um lugar chamado Caldeira onde se faziam corridas com capotes de carros. É também o ano da descoberta das ruas flutuantes que eu ainda desconheço, o ano do roubo de refrigerantes, pelos putos, às camionetas de sumos estacionadas em qualquer sombra de verão à hora do almoço, é o ano do roubo de frutas nas pequenas quintas de Santiago de Árvore. Por fim, é o ano de ser possível ficar até às dez da noite nos batelões, como chamávamos aos barcos gigantes de metal, a apanhar caranguejos e peixes preciosos no rio Navalha, é o ano de brincar a coisas que sugiram beijos nos lábios com as línguas, ou até mesmo o estímulo ao sexo apenas pela fricção dos corpos. Tudo se transforma como coisa real. Na minha rua as pessoas falam do que querem e como querem. Até ai tudo bem não fosse o facto de já não haver conversa provável entre mim e pessoas que se dizem autênticos conversadores de café. Portanto não é difícil imaginar que todas falam para si mesmas. Pouco me importa tudo isso. Há um sol enorme e as ruas vão sempre dar a sítios que nos apoquentam menos. Esta rua, por exemplo, por ser uma rua flutuante, ou seja, está assente sobre o Rio Navalha, é pouco movimentada pois há o perigo de uma das madeiras que a sustém rebentar, deixando alguém num verdadeiro martírio. Para mim é natural. É o caminho que faço obrigatoriamente todos os dias, com a excepção dos sábados e domingos de verão, que é quando venho a nado desde a margem de Santiago de Árvore até Fragata. Hoje estou de regresso a casa mais cedo que o habitual. Foi um dia seriamente aborrecido e penso não repeti-lo. As casas foram as casas, o céu foi o mesmo durante largas horas e até mesmo o género de pessoas ordinárias, mas interessantes, que por aqui circula diariamente, não deixou de ser isso mesmo, tornando o dia péssimo e desagradável ao meu cérebro. A minha casa é a DJ9, descrição essa que persiste desde há muito. É que mesmo antes de eu cá morar já havia sido designada como tal. Moro no DJ9 deste pequeno espaço de nome Fragata e que se situa no Rio Navalha. Antes morava cá um tal de Dom Maldade. Ainda hoje vem cá pessoas, das mais estranhas que já vi, a perguntar por ele. Umas até da pior espécie, não pelo ar que trazem mas sim por correrem rumores de que esse tal Dom Maldade seria um cobrador de dividas difíceis. Quando me aparecem por aqui tento ser o mais breve possível. - Dom quê, desculpe? – pergunto eu franzindo a testa. - Dom Maldade. – repetem. - Ah, esse! Já não mora cá. – digo eu a tentar fechar a conversa. Mas quando já estou de costas tentam saber mais um pouco. - Mas conhece-lo? – perguntam levando as mãos aos bolsos do casaco e olhando em redor. - Não, não quero mais nada, obrigado. – digo um pouco atrapalhado, já sem qualquer interesse no que me possam dizer e tentando finalizar o diálogo. Nisto fecho a porta sem fechadura, empurrando-a. O maçudo é ter de ficar encostado a ela, fazendo pressão sobre o lado de dentro. Há sempre a hipótese de alguém, mesmo sem maldade aparente, espreitar e depois querer entrar à força. Chega a ser ridículo este tipo de pensamento. É que a porta é decorada por fendas. Não me preocupa se é de boa educação, mas espreito sempre por uma dessas fendas para ter a certeza que esses sujeitos se vão embora e que não voltarei a ser incomodado. Por vezes eles persistem em obter respostas e continuam a bater na porta. E eu fico ali agachado até se fartarem, o que me vale sempre uma bela dor de costas. Por vezes imagino que alguém poderia vir cá para me roubar. E roubar-me-iam o quê? A cama? Pois sim, a cama. De resto não tenho mais nada que considere importante. Mas deixemos esses pensamentos. Gostava de poder dormir hoje mais descansado. O problema é que, tal como nos últimos dez anos, o remexer do pensamento não me deixa dormir já, e já é neste momento. É tempo de vestir o pijama. Mas, se o pensamento não me deixa dormir já, não se justifica que eu faça tanto sacrifício para repousar a horas certas. Já nem considero uma tortura ficar acordado até amanhecer. O hábito já mo sustenta. Depois é só deixar que as pestanas comecem a pesar, se pesarem e começo a divagar. Precisava de um chá que me transformasse num comício, para que o tempo passasse rapidamente. Os olhos ficariam contentes com tantas conversas na cabeça. Mas voltaria impetuosamente ao mesmo. Mais vale deixar-me estar acordado pois aproveito melhor o tempo. É que às vezes sonhar muito suja a alma. E vemos o que não queremos ver, não ouvindo nada nem prestando atenção a nada. Tenho sempre muito cuidado à hora de dormir, não vá a palma da minha imaginação entornar todo o brio que, embora feio e bruto, sempre me ajuda a queimar rascunhos de cascalho que trago dos dias enfadonhos. O meu corpo por vezes anda molhado por saber que um dia o meu coração se desgraçou. Ainda que toda a culpa seja do tão maldito e engenhoso pensamento, é sempre nos olhos que tudo se manifesta. É o que eu digo. O dia de hoje por instantes, reparo agora. Antes as coisas eram mais simpáticas. Dava para começar a dormir com um, “ era uma vez “! Mas aos vinte e oito anos soa melhor um, “ boa noite meu amor”, vindo de um corpo feminino que nos aperta contra o seu peito. No entanto, desde que cheguei, desde este pequeno ápice em que vesti o pijama, neste preciso instante, e parece até que tinha de ser hoje, remexo no pensamento e nem disso me lembro. Tudo porque a insónia me traz a ruína todas as noites na mesma hora. E nunca falha, nunca se atrasa, quer eu tenha já pijama ou vá simplesmente a caminho de casa. - Lá vem a insónia. – digo eu às vezes, sabendo o que me espera – Lá vem ela, sempre no momento certo para marcar encontro ou casamento. Parece que é uma festa. É assim que eu adormeço nesta casa perfilada no rio Navalha. Adormeço ou penso que o faço. É mesmo verdade. Será assim tão difícil dormir quando se quer? Não consigo fechar os olhos. Nada de sono (...Continua...)


Sandro Pires


sábado, outubro 15, 2005

Porque nunca, jamais, te poderia ignorar...


You are welcome to elsinore.


Entre nós e as palavras há metal fundente
Entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
Entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas, portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny

Descontraidamente...
Desfazendo-se o paladar do café entre a lingua e o céu da boca... Mais o cigarro no impulso da pausa...
E ao colo, Mário Cesariny.
Estou atento. "Atentíssimo"!


sexta-feira, outubro 14, 2005

Cães que são cães, que são gatos, que são cães...



E se eles falassem... se dissessem... um palavra ou uma frase que fosse...




...Diriam que é fácil dizer que é difícil... e que não basta gostar... como quem gosta de um gelado ou de uma roupa super contemporânea... "É o amor! É o amor!"

O ritmo do que escrevo é para mim a beleza das palavras. Eu sei! Mas continua a ser.

Agarro-te antes que enlouqueças e atiras-me da proa do teu navio.
E não morro por um fio.
Disse: “ Não morro por um fio.”
Alguém está louco a frio, sem imaginação que chegue para não tornar o meu teatro numa comédia, num drama.
Alguém a dormir sem cama.
Ao frio.
E depois de quatro ou cinco gritos sou o herói que te segue a arrastar-se pelo nojo do chão.
Em jejum de beijos.
Perdi todos os desejos, ao ficar louco.
Sou um bonequinho de madeira a fugir do sol, mas que é um encanto.
Que é do abraço que me sustenta?
Ficou parado na lentidão.
Dorme sossegada na fadiga Ana pequena.
Sem cansaço de paixão antiga.
Juro que aguento viver sem sorrir, sem falar, sem chorar, sem mentir.
Fiquei azul de comer tanto céu, tanto mar, de tanto jurar.
Sou inútil.
Génio, mas inútil.
Ah! Se me visses soberbo de amor, a escapar ao coração podre de dor, como um vulcão só de vapor.
Aumentas a tua ira.
De rosto amarrotado pelas mãos do génio da loucura, faminto de um mal estar cruel, como se tudo fosse doce e mel.
Dia de fugir.
E eu corro atrás.
Mas só até ao fim deste dia, que era leve e profundo, puro e lúcido.
Que monstro!
Mudar assim tão brutalmente.
E eu, humilde e manso a pedir ao tempo cem milhões de perdão.
Do navio não!
Para o chão não!
Essência perdida que envelheceu mais rápido do que eu, é o que é.
Treme, treme coração.
Converso com ele na mão e a olhar-te cego e crente.
Pobre velha ingenuidade.
Que é do abraço que me sustenta?
Gira, gira Ana pequena em redor do teu encanto, a chorar pela velhinha que morava bem sozinha na casinha do Pai Santo.
A velhinha morreu.
Era ceguinha.
Vem ouvir-me cantar.
Meia noite sem estrelas num céu escuro e desencantado.
Onde está a tua lua?
Queres vê-la?
Então pára um pouco no banquinho vermelhinho, ao lado da igreja, onde a chuva sabe bem e lava a alma com mais calma.
E tu não paras.
E eu cansado de fechar os olhos.
O verdadeiro maestro da Aninha pequenina.
Volta a chover.
Que é do abraço que me sustenta?
Creio que era errado.
Ficou fechado.
Cá fora o meu altruísmo persiste, sem inveja da cabeça alta e sorridente.
Cariz baixo.
A fechar os olhos a três tempos.
Já vais longe, acho, penso.
Atira-me do navio quando estiver sonâmbulo e fraco de amor, seja de que amor for.
Tanto fogo na tua fogueira.
E eu a dançar no meio dela, enfeitado pelo fumo colorido, como um mendigo.
Que castigo.
Eu, doentio pelo vinco que me traiu.
Depois passa.
Tudo passa.
Mais preenchida fica a vida, sem esmola de sonhos que são teus olhos em sintonia a marchar para um castelo.
Redobro os meus nervos.
Onde está o meu amor?
Morre na chuva da rua curta.
Quem diria!
Agora regresso mas sem pressa.
Sozinho como num conto.
Lacrimejando e choroso.
Fora do navio.
Agora por um fio.
Dorme, dorme sonhador.
Deslumbrante e transparente, como um espelho que corta.
Talvez tenha sido feito para cortar qualquer olhar.
E se parasse de olhar, agora que a nada se reflecte?
Mentira.
Absolutamente mentira se pensar que te segui até ao navio, até ao cimo do monte, felicíssimo e condenado por te cruzar Com este corpo.
E isso reflecte.
Foi pela lua que te inventei, janela.
Hoje serei a tua cortina branca e de seda, a remexer-se elegante e muda, como se fosse surda se lhe dizes que fique quietinha.
Vem comigo até cá baixo.
Vem que eu não falo.
E se falo logo me calo, feito criança, pedinte de amor.
Já não quero esta dor.
Já não existe espaço.
É sempre tanta coisa.
Conheces o homem que nunca foi nada?
Saiu de casa de madrugada para fechar os olhos de uma rajada.
Porque já não havia espaço.
Não havia nada.
Nem um passo.
Que mundo na nossa cabeça!
Mas sabe bem.
Até que nos atiram do navio do Capitão Maldade.
Mas o Capitão já não mora lá.
Já não se chama Maldade.
Já não é Capitão.
Acabou o filme que era longa metragem, ou que iria durar até eu me fartar de escrever sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa.
Não sei se volte cedo.
Se dormir bem.
Se me fartar do filme.
E é realmente difícil o entendimento.
Nem sequer estás a ralhar comigo Aninha pequenina.
Só quero ficar ai.
E se dormir bem, se me fartar do filme, talvez me levante desta cama, a quem roubaram os cobertores porque eram feitos de renda.
Aperta-me ai no teu colo.
Guarda aí um lugarzinho para mim.
Já não há espaço?
Então fico sozinho a dormir aqui.
O sono e a confusão misturados.
Fascinante no verdadeiro sentido da frase, mas qualquer interpretação serve.
Apregoa a alma.
Sim, a alma!
O mundo agradece.
Depois, mais tarde, o mundo agradece.
Agora já me podes atirar do navio.
Devagarinho para não fazer muito barulho ao cair no chão.
E fecha a porta.
Fecha.

Madrugar para pensar.



Ter cinquenta anos.

Não pensar no porquê das coisas.
E o medo que entre alguém no nosso quarto,
Exactamente no momento em que estávamos
A olhar para a porta.
Ter pânico que esse alguém tenha nome, que
Esse alguém diga qualquer coisa, ou que
Simplesmente apareça e se vá embora sem dizer
Nada.
Passar os dedos da mão pela cabeça farta de
Cabelo.
E as coisas são mesmo assim.
Mas podiam ser de outra maneira.
Ocupar a concentração pintando paredes,
Colando desenhos e trocando as madeiras do
Quarto.
É mesmo necessário mudar as mobílias de vez
Em vez.
E rir.
Ou então concentrar a ocupação do tempo
A guardar recordações de há tão pouca idade.
É melhor assim.
E lastimar-se.
Ter raiva dos miúdos vaidosos, enfeitados de
Penteados e roupas demasiado ridículas.
Meninos que para além de decorarem a data do
Cinco de Outubro, por ser o dia da implantação da
Repúblicas, não sabem que Portugal não é tão bom
Como se diz.
Querer beijar todas as senhoras bonitas entre os
Dezoito e quarenta anos que passem por mim nas
Estradas, nas passadeiras, apressadas porque o
Sinal que era verde ficou agora de outra cor.
Queria mandar-lhes cartas de amor pelos olhos,
Flores, recados de mendigo.
Querer desistir da vida tão simplesmente como
Oscilar a cabeça, só porque deixou de existir chá.
Andar às voltas sem sair do mesmo lugar.
Sair de casa em direcção à lojinha de pijamas
Perfil sabendo que está tudo igual, e que o mais
Provável evento é o descontentamento de voltar
Para trás.
E ir.
Contrariado, mesmo andando sozinho e por
Vontade própria.
Voltar para casa aborrecido porque está seriamente
Tudo igual, e dizer:
- “ Eu já sabia. “
Pintar paredes.
Colar desenhos nas paredes.
Trocar as madeiras do quarto.
Guardar memórias de há tão pouco tempo.
Depois de toda a raiva que se tem, irrompe o
Desejo de ter, de possuir as senhoras bonitas.
Mas só com beijos, só com puxões de lábios,
Só com lábios.
E por fim, não ter chá para comemorar o ter
Cinquenta anos.


quinta-feira, outubro 13, 2005

O princípio de tudo.

Existem milhões.
Centenas de milhões de pessoas à espera de um momento.
O momento certo.
E na sua espera, na espera do momento e do tempo, manobram-se como máquinas, falam como máquinas, e sentem como máquinas. Sentem, mas sentem apenas o que a pirâmide que é sinónimo de alegoria da caverna, simboliza nos seus olhos, mente e coração.
Construir o mal é ilusório na vida animada das centenas de milhões de primatas que aqui se consomem.
Inventar sons, dialectos, sons e dialectos que se repetem como discos sempre actuais. Agir no ódio é quase a perfeição.
Considera-se todo o andamento da vida a parte natural de um mundo que o não é.
Por isso o mundo que aqui existe não se desgasta, não se cansa de criar “ uns e outros ” que o aparentam e que mais não conhecem que não seja a ignorância.
E aí estão eles.
Ostentando acções, conversas, sensações.
Tudo para ser como o mundo, a pirâmide vulcão de tanta dor, de pouco amor.
E um dia houve, em que os milhões, as centenas de milhões de pessoas, não passavam disso. Pessoas, e más.
Houve depois, alguém que pensando no seu cantinho do mundo, quis ser mais que uma só pessoa, e quis fugir, encontrar um novo som, um novo dialecto regido pelo bem, o belo, a sabedoria.
E tornou-se duas pessoas.
Cinco pessoas.
Vinte, cinquenta pessoas.
Duzentas pessoas.
Cinco mil, um milhão de pessoas.
Cinco mil milhões de pessoas ou cem mil milhões de pessoas que eram todas as pessoas.
Esse alguém tornou-se todas as pessoas do mundo.
E um dia fartou-se.
E quis depois ser o mundo, inventar uma outra alegoria de pirâmide e conseguiu, mas ficou só.
Por isso o mundo é hoje uma só pessoa, ou uma pessoa só.
Uma, e só.
O resto do mundo é, ou são máquinas à espera do seu momento para ser o mundo na sua mais atroz forma de organismo,gene, ou bactéria.
- “Nove milhões novecentos mil novecentos e noventa e nove.
O seguinte por favor.“

Saúdo-vos na vida em mudança, num cão chamado Farrusco, um blog que nem sempre é uma peça de teatro.
Visitem. Façam boa figura.