quarta-feira, setembro 27, 2006

Afinal o que importa... O Filme - III

Ainda na reminiscência


Vejo olhos enfeitados de ternura.

No escuro a noite é pura. (desviando o pensamento daquela recordação) Só mais um acorde… só mais um acorde e acabo esta letra… (exaltado) só mais um acorde, só mais um acorde, só mais um acorde caralho… (respirando ofegante e depois gritando)
Cabrões de merda. Devem fartar-se de rir das coisas que digo. E o sacana do James sempre com a mesma conversa.

(reproduzindo irritado um discurso de James)

"A música até está gira mas como um todo não funciona pá! E depois não faz sentido. Não há mercado para isso pá. Não percebes que as pessoas gostam de coisa que entrem no ouvido, só isso. Não gostam muito de pensar, gostam de coisa fáceis, de fácil consumo. “No escuro a noite é pura”? Não percebo, pá! Tavas com a neura e saiu-te, não é. A malta jovem não quer saber disso para nada. Porque é que tu não escreves coisas do género, “chuva de Inverno” ou “Verão quente”. Vê lá isso pá. Olha que não posso andar sempre atrás de ti. E olha! Vê se escreves em inglês que eles gostam mais e sempre tens mais hipóteses no mercado internacional. Não é, pá! Eu depois falo de ti aquele pessoal. Olha que o gordo que manda naquilo gostou de ti. Tens trabalho amanhã? Se não tens avisa. Olha que este paga bem..."

Volta a si.

Grande porco. Eu quero é que estes gajos se fff… (congela)

terça-feira, setembro 26, 2006

Continuando com O Filme da tua Vida - II

Estende o vestido no chão e observa-o.

Tinhas vinte anos, eu sete. Acabavas de vender todos os teus discos em vinil que valiam uma fortuna. Tomei banho nessa noite. Vesti a minha melhor camisa e as únicas calças que tinha. Eram onze e meia da noite e tu levaste-me ao Greencherry, um dos sítios mais frequentados de Port Laos. Seis quilómetros a pé. Foi uma sorte termos chegado antes de fechar. Estava praticamente vazio. Sentei-me de frente para a janela. Tu ao balcão pediste para mim, um gelado. Até aos meus sete anos não havia comido um gelado que fosse. Era coisa para gente de boa carteira. Nem sabia por onde começar. “Olha que isso derrete!”, disseste-me enquanto levavas um cigarro aos lábios. Cada colher que eu levava à boca era mais saborosa que a anterior. Havia uma pressa incontornável de provar todas as cores, perceber qual o sabor de cada cor. Uma felicidade enorme. Tu olhavas-me como se eu tivesse acabado de nascer, como se estivesses a pegar-me ao colo. E esqueci-me por momentos de todas as sovas que me deste. Os olhos brilhavam-te. Muitíssimo! Olhaste-me mais uma vez e sorriste-me. Nessa noite fui para casa depois da uma da manhã. Um verdadeiro recorde na altura. Deixaste-me dormir na tua cama, com cobertores e tudo. Disseste-me, - “Cuida bem de ti Jim” e deitaste-te no corredor ao fundo da sala com mais um dos teus clientes habituais. Talvez para pagar o gelado que comi.
Pouco me importa a vida que levavas. Uma mãe é uma mãe. E morreste-me nessa noite ou simplesmente não quiseste acordar… no dia em que eu, pela primeira vez comi um gelado. Foi fácil chamar um médico. O mais difícil foi dizer, -“Sou filho dela, e não tenho mais ninguém.

Silêncio. Pega novamente na guitarra.

Transporta


Rapaz III vai buscar uma cadeira e arrasta-a até ao meio do palco. Senta-se nela.


Rapaz III - Sou uma pessoa agitada. Exalto-me com facilidade.
Tenho de conter-me na maneira como aceito o que as outras pessoas me dizem.
Tenho sempre presente a sensação de que todos me querem mal. Há sempre alguém escondido à espera de uma oportunidade!... Para me seguir até casa, levar-me para um lugar escuro e inacessível onde ninguém me possa encontrar, e aí fazer-me as piores coisas do mundo, coisas horríveis, coisas que só eu possa imaginar.
As paredes têm olhos. Acreditem que têm olhos. Tento ficar sempre alerta não vá uma dessas paredes descobrir tudo sobre mim. As minhas frustrações, a importância que ninguém me dá. Sinto que as paredes me fotografam, que me copiam os mecanismos mentais, as atitudes. (pausa)
(sussurrando) Há dias tentei suicidar-me! Duas vezes em menos de duas horas. Por causa das paredes. Por causa das pessoas. Por causa das minhas frustrações. (pausa)
Hoje mesmo, quando já estava tudo preparado, quando eu tinha a certeza absoluta que ia ser hoje, o meu pai telefonou, extremamente agitado. Tive de atender o telefone pois podia ser a última vez que falávamos. (fingindo falar ao telefone) “Estou sim!?” A princípio fiquei sem perceber o conteúdo do seu discurso. Estava bastante agitado e não parava de me dizer que eu tinha de ser forte, que os próximos momentos seriam de dor, que por isso tínhamos de nos unir, de nos apoiar, que iria precisar de mim mais do que nunca, e eu dele. Disse-me para ter calma embora soubesse que no momento seria difícil aceitar a verdade dos acontecimentos. (pausa)
Congelei. Fiquei sem palavras. Não era possível que ele soubesse da minha intenção. Foi fácil ficar nervoso o que é normal em mim, e em poucas palavras disse-lhe que não estava a perceber nada do que ele tinha dito. Mas não excluí a hipótese de ele saber do que eu tencionava fazer.
Ele repetiu todas aquelas coisas novamente dizendo ainda que a vida é feita de sofrimento, que as pessoas não duram para sempre e que é nesses momentos que temos de ser fortes. Depois ficámos uns minutos sem dizer mais nada. E seguidamente, mesmo que tivesse algo para dizer tive vergonha de mim, e com toda a razão para tê-la
Transpirava exageradamente. A minha respiração acelerada não me permitia dizer absolutamente nada para continuar a conversa. Consegui por instantes ver o meu movimento cardíaco no vulto da camisola. As lágrimas começaram a misturar-se com a transpiração. E tive medo. (acelerando o relato)
Que ignorância a minha. Que falta de coragem. Uma quantidade infindável de coisas para descobrir e eu cansado não sei de quê ou de quem. Só porque é fácil desistir, só porque me é tremendamente difícil dar sem pensar que a cada dia estou a receber.
Depois daquele grande silêncio decidi desculpar-me por todas aquelas atitudes neuróticas, psicóticas e inconscientes. Talvez falando abertamente da minha intenção, inconsciente que fosse, talvez me sentisse com vontade para ver o mundo de outra maneira.
E foi então que percebi que a intenção do telefonema nada tinha que ver comigo, nada tinha de meu, pois mal eu abrira a boca para dar tudo de mim, ele, esse a quem sempre chamei de pai, disse muito calmamente, soluçando, choroso e desgostoso.
“Estou na casa da tua avó (pausa). Já liguei para o hospital... e... Eu... acabei de encontrar a tua mãe no chão da sala. Envenenou-se. Ainda chegou a dizer-me que... Não desligues por favor.” (Respirando compulsivamente à medida que o seu rosto vai ficando encharcado de um enlagrimado cansaço)
Tudo isso se passou há menos de trinta minutos.
Estou mais nervoso do que o habitual.
Encontro-me num impasse.

1 - Levanta-se da cadeira e vai até ao centro do palco.
2 - Faixa 12 de Vim Martens.

Para lá dos teus olhos...


domingo, setembro 17, 2006

O que muda é o sorriso, não a intenção


Willie

Sim, sou eu! O Willie! A fazer exactamente a mesma coisa... que fiz ontem de manhã! E antes de ontem de manhã! E antes de antes de ontem e antes de.. Engraçado! Ía jurar que se hoje não estivesse a fazer isto, já saberia como é não fazer isto. E não mudaria nada! Absolutamente nada. Ou mesmo se o meu nome não fosse Willie eu continuaria a fazer algo como tomar duche, lavar os dentes, pentear-me... desfazer a barba! Vestir-me, despir-me, vestir-me, despir-me... de manhã, todas as manhãs! Poderia tomar o pequeno almoço a meio da tarde ou insistir que o que como é um jantar matinal, mas todas as manhãs, ao olhar-me neste espelho fosse para o que fosse, não deixaria de ver a mesma cara! A cara do Willie! Curioso. Todas as pessoas devem pensar nisto de vez em quando! Ou talvez não! Talvez isto, para mim, já se tenha tornado demasiado maquinal e enfadonho!

Que estupidez! Nem sei porque estou a pensar nisto agora!
Acho-me feio! Não sei! Acho! É claro que às vezes também me acho bonito, porque tudo depende da minha boa disposição e porque é mesmo assim que tudo funciona! Se estamos bem somos inteligentes, compreensivos e até bonitos! Se não... paciência e não há ninguém quem nos ature!

E ela? Ela ! Estou farto de ser o senhor anónimo que envia cartas sem se importar que não tenham resposta.


Ana Lee

Tive um sonho horrível! Que coisa! Prefiro nem me lembrar! E estas olheiras!? Meu Deus!

Uma pessoa deveria poder escolher a cor dos olhos, a cor do cabelo! Deveria poder escolher ser mais ou menos bonita, consoante aquilo que lhe agrada! Aquela história de sermos todos bonitos nem que seja interiormente, é só para nos consolar e para aceitarmos de uma maneira suave todos os defeitos que temos!
Imagino-me com um batom caríssimo, de olhos pintados e com montes de porcarias no rosto. Seria mais bonita? Não sei! Provavelmente ficariam a reparar se seria Chanel ou Cristian Dior em vez de repararem em mim. Afinal de contas é isso o mais importante! Somos o que vestimos, o que usamos, o que possuímos! Essa é sem duvida a nossa beleza! E talvez por isso ele nunca venha a olhar para mim!
Durante este tempo todo não houve um só momento em que não pensasse nele. Não me sai da cabeça! Se ao menos eu fosse um pouco menos insegura, menos... ( olhando-se fixamente e tocando no rosto ) Poderia dizer-lhe alguma coisa hoje se o voltasse a encontrar. “Olá! Eu sou a Ana! Ana Lee! Lee com dois E’s no fim. Que ridículo! Provavelmente ele diria: «Eu sou o Willie”, eu dizia que já sabia, ele perguntava como é que eu sabia e eu estragava logo tudo! ( levanta-se, calça uns chinelos, põe um elástico no cabelo, e sai a correr )


Sofia

Gosto de me ver a chorar! Não digo chorar como as crianças mas assim como estou agora! Só com a cara molhada! Gosto da minha imagem assim, triste! É isto que eu sou e não a Sofia Lee de 23 anos. A que mora no terceiro andar da rua Alta. Parece que as pessoas aqui descobrem mais rapidamente que sou uma pessoa triste, e provavelmente sozinha, do que descobrem que moro na mesma rua que elas e que me chamo Sofia e que tenho 23 anos. É ridículo e algo automasoquista mas não deixa de ser verdade. Sinto-me igual a ontem. Sinto-me sem evolução, sem alteração de estado de espirito! Chego a ter vergonha de mim. Estou farta de fingir que ainda acredito na busca da tal felicidade que dizem chegar para todos! Estou farta! Os outros se quiserem que continuem a fingir. Eles que procurem essa felicidade, e que continuem a desprezar-me por muito tempo. Eu vou continuar a odiá-los ainda mais porque já antes os odiava. (Colocando as mãos na cabeça e olhando-se fixamente no espelho. Pega em algumas cartas ) Se um dia descobrir quem tu és, tu que te esconde por detrás deste “anónimo” para poderes troçar de mim... Sou uma porcaria! Não sirvo para nada! Sou horrível, horrível, horrível!
Tenho de acabar com isto! Tenho de sair desta casa e fazer alguma coisa lá fora!

sábado, setembro 16, 2006

Antes que seja tarde - I


O Filme da Tua Vida

Teatro que cruza o género cómico e dramático, através de elementos sérios e comoventes assim como elementos hilariantes e patéticos.



Personagens: Jim e James

Espaço da acção: Águas furtadas e exterior abstracto.




Acto I

Águas furtadas. Inicio da manhã. Vários caixotes de madeira a servirem de mobília, uma moldura com um retrato num dos caixotes, um vestido num cabide de chão, vários livros espelhados pelo chão.

Cena 1

Jim está no palco com a uma guitarra e começa a interpretar versos da música que está a compor.

Comprei uma noite para amar
Senti as palavras a fugir
Não há ninguém que queira dar
Asas e vento para subir

Vendo pedras mal pintadas
Roubo sonhos para acordar
Mato o pó que me sufoca
Já não sei chorar.

Passei noites a romper pensamentos
E nessas noites tive mais que uma flor
Toquei os olhos de mulheres mal vestidas
Tive beijos sem sabor

As noites são diferentes
O amor só tem imagens
De saliva que é mal gasta
À procura de viagens

Vejo olhos enfeitados de ternura
No escuro a noite é pura.

Pára de tocar. Coloca a guitarra no chão. Tira um cigarro do bolso e leva-o aos lábios mas não o acede. Senta-se no cadeirão.

Jim – No escuro a noite é pura! Algum daqueles gajos sabe o que é que isso significa? Anda um gajo aqui a humilhar-se, a negociar a arte por tostões. Fascistas de merda.

Acende finalmente o cigarro.

Quero lá saber! Nem sequer sou anti-fascista ou anti-capitalista ou anti porra nenhuma. (Fixa a fotografia que está na moldura em cima de uma mesa) O que as pessoas querem é “coisas novas”, novinhas em folha. Quem não as tiver está bem fodido. (Pega na moldura) Não é Sara? Não é isso que nos ensinam e que tu bem aprendeste quando te aproximavas dos carros e dizias, “faço tudo!” (Volta a colocar a moldura no seu lugar)
Quinze anos, uma boa mini-saia e um perfume de nome “bon chance” fazem toda a diferença. E nem é preciso sorrir. Sorrir para quê?


Som de carros a circular. Jim olha para cima e fecha os olhos

“Hei! Você aí. É prostituta como as outras, não é? Então combina-se já aqui o que é que se faz. Dou-lhe um conto. Uma nota de conto e serve-se também um amigo meu que está cá só de passagem. E se não fizer perguntas somos capazes de lhe dar um pouco mais.”

Dirige-se para o vestido que está pendurado no cabide e simula uma conversa a dois.

Era assim que eles falavam contigo.
E tu gostavas. E como gostavas. Havia sempre dinheiro para café e cigarros. Cigarros que eram um banquete, uma refeição, uma razão para acordar…
“Hei! Você aí. É prostituta como as outras, não é?”
Eras linda e gasta!
E durante muito tempo levaste uma vida de merda, uma vida às cegas, de dívidas e violência e mais não sei o quê. E eu nunca fora tão feliz e infeliz como no dia em que tu me morreste.

sexta-feira, setembro 01, 2006

O sorriso de quem é especial não se vê, sente-se.



Não é especial quem quer...
... É-se especial muito antes de o ser, de o notar ou de o glorificar.
Não se pode desejar ser especial, fingir-se que se é...

... E muitos dos que o são, esses os que consideramos especiais, são-no apenas por aceitar a verdade de que o não são.

Na pressa das palavras

Em sintonia acende o cigarro e senta-se no vazio, esperando que algo a ampare.
Nesse momento o Corpo IV apressa-se a oferecer-lhe o seu joelho como se fosse uma cadeira.

A Rapariga I descai o corpo para trás e o Corpo II apressa-se a suporta-la, como se fosse ele próprio as costas de uma cadeira.
Ela fica como que num divã, a bafar o cigarro, em pose elegantíssima.

Rapariga I – Segurai-me com firmeza cavalheiros, pois que sou gentil donzela e rara preciosidade.

Corpo IV – (impressionado) Não duvido, bela senhora. Bem vejo quão grande é a beleza que vossa feição suporta. E por quem sois, ou por quem é vosso coração?

Rapariga I – Ousais demandar sobre um coração que desconheceis. Sois destemido. E cuidais que vos hei-de responder?

Corpo II – Destemido aqui me tendes donzela e senhora. Nada receeis pois que me encontro a vosso lado e a vossos pés. Ser-vos-ei nobre no quanto desejardes, justo e disponível. É por mim vosso coração, acredito.

Corpo IV – Que absurdo meu pobre sonhador! A mim se destina a contemplação de tão bela graciosidade. Que não vos iluda vossa inutilidade. Sois banal, de rejeição.

Corpo II – Que me dizes? Tende cuidado. Medi bem as palavras que me atiras. Com um só gesto sou capaz de vos eliminar.

Corpo IV - Vós e um exercito suponho. Ou melhor! Nem mesmo um exercito e quanto a vós... Vá desamparai-me o espaço de conquista. Não vedes que me importunas?

Corpo II – Ai de mim que me atiro sobre vós. Usais de tão seguras palavras e não cuidais do perigo que vos espera.

Corpo IV – Nobre donzela e senhora. Se me permitis acabarei já de seguida com este estafermo que me molesta.

Corpo II – Atrevei-vos se a coragem não vos falta. Mas advirto-vos que deste corpo não levareis se não pancada. Atrevei-vos então.

Rapariga I – Calai-vos por favor. É por mim que lutais? De onde vos virá aos dois tal ilusão? Não vedes o quanto vos desprezo?

Corpo II – Todavia nada entendo de desprezo. Meu coração é uma rosa para vós.

Corpo IV – E Meu coração um jardim!

Rapariga I - Pois se é vosso coração um jardim colhei-me lírios, cravos e açucenas.

Corpo IV - Lírios, cravos e açucenas?

Corpo II - (rindo) Agora mesmo vos dareis conta do embusteiro que aqui tendes.

Rapariga I – Pois sim darei. E vós que tendes um coração em forma de rosa, podeis ao menos oferecer-me pétalas, e que não estejam murchas, peço-vos. (rindo)

Corpo II - Zombais de mim por instantes?

Rapariga I - Ao menos sempre me divertis nesta pasmaceira.

Corpo IV – E isso quereis? Pois se divertimento quereis aqui me tendes. Mandai-me contar um chiste ou uma graça sobre este burlão. Hei-de fazer-vos rir que nem um bobo.

Corpo II - Pobre ignorante. Bem vi que nada possuis de romântico. Para bobo tereis feição, não duvido. Vá. Diverti-me também a mim que me aborreço.

Corpo IV - (furioso) Eu seja cão! Estais a pedi-las!

Rapariga I - Ah! Já começo a cansar-me de tão pouco juízo de tendes vós os dois. Quero ir-me.

Corpo IV – Não antes sem um beijo, peço-vos!

Corpo II – Um beijo me bastaria para…