terça-feira, dezembro 12, 2006

O Filme prepara-se para o "Assalto"... XIII



James -
Tudo bem, não faças essa cara. Sou o porteiro. (sai a correr)


Cena 3

Jim senta-se no caixote mais alto.

Jim – O James é um tipo ignorante. Às vezes parece um autêntico atrasado mental que vive como rei no meio de outros atrasados mentais. Para ele todos os problemas se resolvem com ameaças. E há sempre uma solução mais violenta para um problema onde a ameaça não funciona. É um frustrado em relação às mulheres. E todos os beijos que deu a raparigas foram pagos. Mesmo assim tem sempre a conversa de não precisar de mulheres nem de ninguém porque é um verdadeiro líder. Quando o conheci já ele era um oportunista. Ganhava pequenos trocados a mostrar os pelos púbicos e outras partes pudicas a velhotes pervertidos e asquerosos. A mim, sempre me enganou, fosse com as coisas que tirávamos dos contentores de lixo ou fosse com os trocos que nos pagavam na sucata do senhor Avelino. Faz-me confusão que não saiba ler nem escrever, que não tenha qualquer interesse pela arte ou pela cultura. Mas afinal de contas o que é que se pode esperar de um tipo que não sabe escrever o próprio nome. Presentemente é um menino de recados dos que controlam o quarteirão. Mas a verdade é que ninguém o conhece, pai, mãe, família, de onde veio… Uma vez ouvi-o a contar a uns putos que tinha sido lançado de pára-quedas num descampado, que andavam à procura dele e que precisava de se esconder. Nessa altura os putos arranjaram-lhe uma barraca de madeira junto ao rio com cadeado na porta e tudo. Até hoje.

Cena 4

Entra James.

James – Está feito.

Jim – Como foi?


James – Inventei algo sobre teres ido a uma reunião secreta de última hora.


Jim – E ela?

James – Mal me falou. Parecia desconfiada.

Jim – E mais?

James – Não te preocupes. Disse que voltavas logo à noite.

Jim – E se correr mal? Nunca mais a vejo.

James – O Job leva uma arma. Se alguma coisa correr mal disparamos para cima e corremos. Não estamos a pensar matar ninguém.

Jim – Pois. Mas não te esqueças que estou no lado de fora. E se for um de vocês a ser atingido e precisar de ajuda?

James – Bem… eu e o Job temos armas e… enquanto nos podermos proteger disparamos e corremos.

Jim – Correm para onde?

James – Pois é... Ainda não te tinha dito nada mas assim que terminarmos as coisas lá dentro, tu conduzes o carro do Job. É a tua segunda função.

Jim – Ou seja, eu estou do lado de fora e assim que vocês saírem de lá a correr piramo-nos no carro do Job.

James – E o carro tem de ficar ligado desde o início. Para evitar a perda de tempo.

Jim – Estou a ver. Parece tudo calculado ao pormenor como nos filmes.

James – Pois, mas nos filmes morre sempre muita gente e os tipos são sempre apanhados. De qualquer das formas o Job também me disse que está tudo calculado ao pormenor.

Quase a meio de "O Filme"... XII



James – Já passou algum tempo mas ainda posso lá ir se me disseres onde combinaram. Dou-lhe o recado como agente secreto e tudo em poucas palavras, sem sorrisos... e se tu quiseres nem trocas de olhares. Acredita. Nem chego a olhar para ela...

Jim – E tu vais como?

James –
A pé...


Jim –
Não é isso. Pergunto como é que vais vestido para o assalto.


James –
O Job disse para ser discreto. Só me pediu para levar um cão. Acho que é para dar um ar mais realista ao assalto. E no caso de as coisas correrem mal um cão grande sempre mete algum respeito e algum medo.


Jim –
E o cão?


James –
(sorrindo como se estivesse a ver o animal) Chama-se Fusco. É um cão de caça.

Jim – Pergunto onde está?

James –
(dirigindo-se para a janela) Costuma dormir-me à porta de casa. Até coloquei lá uma vasilha com água e outra onde ponho resto do jantar. (olhando pela janela para a rua) Está sempre lá.


Jim – E tem um ar feroz?

James –
É obediente. (fixando algo na rua)

Jim – Achas que serve?

James – (olhando para Jim)
Serve pois. Às vezes na brincadeira dou-lhe um pequeno pontapé e ele fica com um ar enraivecido, (olhando para a rua novamente) sobe o lábio de cima e mostra-me os dentes.


James avista a rapariga na rua.


Jim –
Coitado do animal.


James –
Parece-me que afinal a rapariga está a chegar.


Jim –
É tarde. Já não deve vir.


James – Parece-me que está a olhar para cá. (escondendo o corpo e espiando a rua)

Jim –
Porque é que não és tu a vestir-te de palhaço?


James –
Porque eu não tenho jeito nenhum para… (baixando-se e encostando as costas à parede que fica por debaixo da janela) Tu não estás a perceber. Acho que a tua rapariga está lá em baixo.


Jim – Quê? Não pode ser? (espreitando pela janela para a rua e vendo a rapariga)

James –
É ela? (baixando-se rapidamente)


Jim e James estão os dois de costas para a parede que fica por debaixo da janela


Jim –
É ela, não há duvida.


James –
Viste como está vestida? Parece-se uma daquelas actrizes de cinema com…


Jim
– Cala-te porco…


James
– Disseste que não voltavas a chamar-me porco.


Jim –
Cala-te e ouve-me.


James –
Se vais voltar a chamar-me porco outra vez…


Jim –
Não idiota. Vamos fazer como combinámos. Lembraste? Não a deixas entrar e faz como eu te disse. Eu saí há cinco minutos e tu és o porteiro. Percebeste?


James –
Claro que percebi. Só não percebo como é que "tipas" como esta te caem nas mãos.

Jim apressa-se responder a James mas este interrompe-o.

James - Tudo bem, não faças essa cara. Sou o porteiro. (sai a correr)

segunda-feira, dezembro 11, 2006

O "Filme" cresce - XI




Jim – É melhor mudarmos para outra conversa.

James –
Não quero saber de conversa nenhuma…


Jim –
Não queres saber quem é que perguntou por ti? A Mary da loja das flores.


James – (entusiasmado) Por mim? Ela perguntou por mim? ela disse “James”? Tens a certeza que foi “James” que ela disse?

Jim –
Perfeitamente. (reproduzindo as palavras de Mary) “Diz ao James…”. Sem duvida. Foi isso. Foi exactamente o que ela disse. “Ao James!”


James – (muito entusiasmado)
Se disse James, então estava a falar de mim. O que te disse ela. Diz-me o que te disse. Perguntou por mim?


Jim –
Disse-me para te dizer para a deixares de seguir depois do trabalho. Ou qualquer dia vira-se a ti.


James – (intimidado)
Foram duas vezes.


Jim –
Também me disse que conhece bem a gente da tua laia, (fixando James com um ar revoltado) que um dia destes nos denuncia a todos por prostituição e que lhe custa acreditar que um tipo interessante como eu ande no meio de velhos de cinquenta anos a vender…


James – (desculpando-se) Ela dá-se bem com o Job. Ele deve ter-lhe dito alguma coisa…

Jim – (irritado) Que vergonha! Não consigo perceber como é que depois de tantas humilhações continuas a ser o fantoche do Job.

James –
Não sou o fantoche de ninguém.


Jim –
Tu mesmo disseste que nem sabes ao certo o que vamos roubar. Não achas que o Job te devia ter dito? Ao menos ficavas a saber de tudo.


James –
Sei o importante. Que lhe deves uma pipa de massa. Aí uns trinta pintores. E que por isso eu fico também com a tua parte.


Jim – E ficas com a minha parte do quê? O que é que é a minha parte?

James –
O que é que isso te interessa? Devias é estar preocupado com essa rapariga que ainda não chegou.


Jim –
Deve estar a chegar. Do café Rouge até aqui ainda são uns bons vinte minutos.


James –
Cá para mim, fartou-se de esperar e em vez de vir para cá, foi para casa. Não te parece?


Jim –
Não sei. Em todo o caso vou-me preparando. Vou ter de pintar os sapatos.


James –
Detesto palhaços.


Jim –
Um nariz…


James – De qualquer das formas quanto mais convincente melhor.

Jim –
Achas que pinte o cabelo?


James –
Não. Leva antes um chapéu.


Jim –
Passa-me aquele casaco.


James –
Está praticamente novo. Vais estraga-lo?


Jim –
É antigo. Já não se usa. A rapariga provavelmente já não deve aparecer. Não… não aparece de certeza.

domingo, dezembro 10, 2006

Liberdade para tudo...


Sempre detestei alturas como esta.

Este relinchar de cavalgaduras hipócritas, anunciando pequenos trechos de felicidade roubados de uma qualquer composição artistica.
Ainda assim, contento-me com o sorriso de quem se sente fugazmente feliz e gosta.

Cerca de 5 a 20 milhões de pessoas falecem por ano por causa da fome e muitas delas são crianças.


Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem trás às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando de longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Os dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?

Jorge de Sena

Ainda na Cena 4 de "O Filme..." - X


Jim –
(acalmando-se) E esse assalto é para quando?


James -
O Job diz que só tens de estar preparado. Eu no teu lugar começava a preparar-me agora.

Jim – (Pensativo e sem prestar atenção a James) Bem… Isso muda tudo…

James – Eu no teu lugar começava a pintar-me e deixava esse encontro para amanhã.

Jim – (Continuando sem prestar atenção a James) … E sendo que já passaram mais de dois quartos de hora…

James –
Na melhor das hipóteses dizias-me onde combinaram e eu ia lá dizer-lhe que não podes. Era o que eu fazia no teu lugar…


Jim –
(Pensativo) … E o mais certo é ela estar à minha espera ou estar a vir para cá…


James –
Definitivamente era o melhor. Enquanto te pintavas eu ia lá…

Jim – (interrompendo James) Cala-te porco.

James –
Se continuas a chamar-me porco…


Jim –
Fazemos o seguinte. Ficamos cá os dois. Eu tenho de me vestir para o assalto, certo? Se ouvirmos tocar, tu vais lá abaixo e dizes a quem quer que seja que és o porteiro e que eu saí há cinco minutos.


James –
Porteiro? Não posso simplesmente dizer que sou o James, que também vim procurar-te, que já toquei e não estás cá.?...


Jim –
Para dizeres que és o James tens de estar lá fora e esperar que as pessoas cheguem. Se disseres que és o porteiro é natural que tenhas as chaves para aqui estar e não tens de esperar por ninguém.


James –
Mas nesse caso tenho de estar cá a fazer alguma coisa. Não posso estar simplesmente aqui como se estivesse a vasculhar as tuas coisas.


Jim – Limpezas.

James –
Limpezas? Pode ser perigoso. Sou alérgico a este tipo de pó. Tens a certeza que não queres que vá lá avisá-la. Parece-me menos complicado. Eu ia ter com ela…


Jim –
(ironizando) Claro, claro! (apontando para um dos caixotes) Põe aquele avental.


James –
(pegando no avental) … E quando a encontrasse dizia-lhe que era da policia ou dos serviços secretos…


Jim –
E dizes que não sabes o que é que vão roubar?


James – (observando o avental)
E que estavas a trabalhar connosco numa investigação qualquer…


Jim –
Perguntei-te se não sabes o que vão roubar?


James –
(atirando o avental para cima do caixote) Em vez de James podia dizer-lhe que me chamo Victor. Exacto, Victor!


Jim – Tu ouviste o que eu acabei de te perguntar?

James –
Ela sorria para mim…


Jim –
Cala-te porco. Pensas que todas a mulheres são iguais?


James – (irritado) Se continuas a chamar-me porco conto a toda a gente que já nos beijámos.

Jim –
Que idiota! Éramos miúdos.


James –
Pois, mas foi mais que uma vez e quando eu não queria tornavas-te agressivo e não me falavas.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Um pouco mais de Filme, por obséquiu! - IX


Jim está de costas para James


Jim – (levando a mão à cara e sussurrando) Cabrão de merda! (irritado) Não vês que estou atrasado! (ironizando) Falamos amanhã, pode ser?

James – Não creio que isso seja possível. Já te disse que é um trabalho sério. Mais. É para hoje.

Jim – Hoje?

James – Rua Constantino. O Job precisa de alguém que se vista de palhaço para entreter as pessoas enquanto nós entramos nos correios.

Jim – E dizes que é um trabalho sério? Pode saber-se o que é que eu ganho com esse trabalho sério?

James – O Job diz que ganhas a possibilidade de ele não te dar uma nova sova. Foi exactamente o que ele disse. Também falou em usar uma arma de fogo, mas não me lembro bem em que situação.

Jim – (sussurrando) Grandes chulos.

James – (descontraído) Só tens de vigiar. Depois vens para casa. Nem sei bem o que é que vamos lá roubar.

Jim – (pensativo) Então é um assalto.

James – (olhando para a janela) Olha. Parou de chover.

Olham para as botas, um do outro, sentam-se no chão e começam a tirá-las.

James – Tens estado pouco em casa. Ainda ontem estive aqui. Duas vezes de manhã e quatro de tarde. É a tal miúda, não é? Ias ter com ela?

Jim – (atirando as botas a James) Que tens tu a ver com isso?

James – (atirando as botas a Jim) Deves estar apaixonado ou algo do género.

Os dois calçam-se.

Jim – Em vez de andares a fazer de menino de recados do “Job disse, o Job fez, o Job mandou”, podias arranjar uma vida para ti.

James – Dizes isso porque já experimentaste...

Jim – Cala-te porco.

James – (de ar compenetrado e desabafando) Nunca estive com uma mulher. Não dessa maneira.

Jim – Cala-te. Devo estar atrasado, pelo menos dois quartos de hora. Culpa tua.

James – Ainda é cedo. Podias levar-me. Eu ficava só a ver.

Jim – Cala-te, já te disse. Grande porco

James – Porco porquê? (reproduzindo as palavras de Jim) “Então ficámos coladinhos um ao outro. Ela não me largava por nada… tinha umas ancas e um peito que até dava vontade de morder”…Lembraste? Como tu me contaste.

Jim – E tu contaste a toda a gente no Café Rouge como se fosse um trailler erótico, porco. Pagaram-te bem, não?

James – (admirado) Três pintores. Dividi-os contigo.

Jim – Mas tinha-te dito para não dizeres nomes.

James – Não falei no nome da rapariga.

Jim – És um porco, é o que és.

James – (fazendo-se de vítima) Podia dizer o nome dela, mas não disse.

O Filme da Tua Vida é este - VIII

Cena 4


James entra e mostra-se contente por ver Jim.

Jim –
O que é que quer
es?

James
– Finalmente! E então? Como vai a música desde a última vez que a ouvi. Aquilo estava giro, pá! Mas como um todo não funciona. E se escrevesses em estrangeiro sempre tinhas mais hipóteses…

(Interrompido por Jim)


Jim –
Perguntei-te o que é que queres? Acabou-se-te o tabaco, foi? Estou mesmo de saída.


James –
De saída? Está a chover. Começou quando subi as escadas.


Jim – Outra vez? (espreita pela janela) Que pouca sorte. Empresta-me as tuas botas. São de borracha, não são!

James –
(tirando as botas) Tenho uma proposta para te fazer. Indirectamente, claro.


Jim –
Não me digas. Uma proposta.


James –
Não posso ficar descalço. (entregando as botas a Jim)


Jim –
(calçando as botas) É mais uma das tuas propostas onde eu acabo no meio de velhos de cinquenta anos a prostituir-me?

James – (fixando as roupas de Jim) É um trabalho sério. E não sou eu que organizo. (apanha os sapatos de Jim e calça-os)

Jim –
James, meu camarada… não estou interessado e… (acabando de calçar as botas) E estou atrasado. (dirigindo-se para a porta)


James – (puxando de um cigarro) O Job diz que lhe deves uma pipa de massa e que um dia destes aparece por aqui… para te destabilizar a vida de lorde. (olhando pelo canto do olho para Jim) Estás com medo ou quê?

O Filme continua - VII


James sai do palco e logo a seguir ouve-se tocar à porta.


Cena 3

James – Jiiiiiimm! Jiiiiiimm! Sei que estás aí. É o James. Jiiiiiimm!

Jim – (Lamentando-se) Depois deste tempo todo, este gajo outra vez…

James – Jiiiiiimm! Tiveste saudades minhas?

Jim – Grande idiota.

James – Jiiiiiimm!

Jim – (Dirigindo-se para a janela) Sóóóóóbe! (sussurrando) Imbecil.

Jim pega na guitarra e senta-se no cadeirão.

Muda-se a pelicula, mas permanece o Filme - VI


Cena 2


Entra James com um cigarro na boca e à procura do isqueiro. Procura nos bolsos de cima, depois nos bolsos das calças. Não o encontra. Tira o cigarro da boca e faz como que uma apresentação de Jim.

James – Este é o Jim. O Jim é um tipo que tem a mania que é artista. Para ele tudo se resume ao génio. Mas o importante mesmo é que as pessoas cheguem a um ponto em que, ter dez minutos de conversa na rua com ele, é um privilégio. Ou seja, futuramente todos deverão estar cientes de que ele é um tipo deveras interessante. Mais. É uma irresponsabilidade não ouvir as reflexões realmente inteligentes que ele tem para partilhar. Costuma sentar-se no Café Rouge. É tão viciado naquele sítio que se o mundo acabasse amanhã lá estava ele ao balcão a observar os rapazes a jogar. Nunca o vi pegar um taco de bilhar mas está constantemente a fazer comentários, sempre muito activo. – “Joga à amarela e manda a branca para cima da mesa. Não. A vermelha não. Põe a três no buraco do fundo e puxa a oito para trás.” O Jim tem uma daquelas bicicletas antigas, toda preta, igual à dos velhos. É mais para impressionar. Tal como o exemplar de “A Origem da Tragédia” de Nietsche. As raparigas estrangeiras que por cá aparecem para os seus “holidays” adoram vê-lo de livro na mão, com um daqueles pequenos rádios para gravar a voz. “Diário de Jim, 14 de Março de 1978. Vagueio pela Praça do Município…” A verdade é que as pessoas cansam-se rapidamente dele. Nos primeiros cinco minutos de diálogo surge a conversa dos diplomas e dos cursos que tirou mas nunca trabalhou a sério para ninguém. De quarta a sábado trabalha no Teatro Central a desentupir sanitas e é o responsável pelo bom funcionamento dos autoclismos. Aos domingos vai pôr flores à mãe. Diz que dá sorte. O resto do tempo passa-o em casa ou comigo. Não somos grandes amigos, mas não nos damos mal. Sempre que posso ganho dois ou três pintores à custa dele. O que está cada vez mais difícil. Há cerca de duas semanas conheceu uma rapariga e nunca mais o vi. (Dirigindo-se para a porta da entrada.) Disse-me que não era nada de especial mas dormiram juntos e tudo. De certeza que está apaixonado.
É um tipo que fala muito, o Jim. Ultimamente quando apareço por cá a primeira coisa que me diz é, “O que é que tu queres”- e a verdade é que me irrita bastante quando o diz.

James sai do palco e logo a seguir ouve-se tocar à porta.

quinta-feira, novembro 16, 2006

O Filme, ainda... - V


Cena 2


Entra James com um cigarro na boca e à procura do isqueiro. Procura nos bolsos de cima, depois nos bolsos das calças. Não o encontra. Tira o cigarro da boca e faz como que uma apresentação de Jim.

James – Este é o Jim. O Jim é um tipo que tem a mania que é artista. Para ele tudo se resume ao génio. Mas o importante mesmo é que as pessoas cheguem a um ponto em que, ter dez minutos de conversa na rua com ele, é um privilégio. Ou seja, futuramente todos deverão estar cientes de que ele é um tipo deveras interessante. Mais. É uma irresponsabilidade não ouvir as reflexões realmente inteligentes que ele tem para partilhar. Costuma sentar-se no Café Rouge. É tão viciado naquele sítio que se o mundo acabasse amanhã lá estava ele ao balcão a observar os rapazes a jogar. Nunca o vi pegar um taco de bilhar mas está constantemente a fazer comentários, sempre muito activo. – “Joga à amarela e manda a branca para cima da mesa. Não. A vermelha não. Põe a três no buraco do fundo e puxa a oito para trás.” O Jim tem uma daquelas bicicletas antigas, toda preta, igual à dos velhos. É mais para impressionar. Tal como o exemplar de “A Origem da Tragédia” de Nietsche. As raparigas estrangeiras que por cá aparecem para os seus “holidays” adoram vê-lo de livro na mão, com um daqueles pequenos rádios para gravar a voz. “Diário de Jim, 14 de Março de 1978. Vagueio pela Praça do Município…” A verdade é que as pessoas cansam-se rapidamente dele. Nos primeiros cinco minutos de diálogo surge a conversa dos diplomas e dos cursos que tirou mas nunca trabalhou a sério para ninguém. De quarta a sábado trabalha no Teatro Central a desentupir sanitas e é o responsável pelo bom funcionamento dos autoclismos. Aos domingos vai pôr flores à mãe. Diz que dá sorte. O resto do tempo passa-o em casa ou comigo. Não somos grandes amigos, mas não nos damos mal. Sempre que posso ganho dois ou três pintores à custa dele. O que está cada vez mais difícil. Há cerca de duas semanas conheceu uma rapariga e nunca mais o vi. (Dirigindo-se para a porta da entrada.) Disse-me que não era nada de especial mas dormiram juntos e tudo. De certeza que está apaixonado.
É um tipo que fala muito, o Jim. Ultimamente quando apareço por cá a primeira coisa que me diz é, “O que é que tu queres”- e a verdade é que me irrita bastante quando o diz.

James sai do palco e logo a seguir ouve-se tocar à porta.

segunda-feira, outubro 02, 2006

O Filme precisa-se de força - IV.


Silêncio. Pega novamente na guitarra.



Vejo olhos enfeitados de ternura. No escuro a noite é pura. (desviando o pensamento daquela recordação) Só mais um acorde… só mais um acorde e acabo esta letra… (exaltado) só mais um acorde, só mais um acorde, caralho… Cabrões de merda. Devem fartar-se de rir das coisas que digo. E o sacana do James sempre com a mesma conversa. (reproduzindo um discurso de James) A música até está gira mas como um todo não funciona pá! E depois não faz sentido. Não há mercado para isso pá. Não percebes que as pessoas gostam de coisa que entrem no ouvido, só isso. Não gostam muito de pensar, gostam de coisa fáceis, de fácil consumo. “No escuro a noite é pura”? Não percebo, pá! Tavas com a neura e saiu-te, não é. A malta jovem não quer saber disso para nada. Porque é que tu não escreves coisas do género, “chuva de Inverno” ou “Verão quente”. Vê lá isso pá. Olha que não posso andar sempre atrás de ti. E olha! Vê se escreves em inglês que eles gostam mais e sempre tens mais hipóteses no mercado internacional. Não é, pá! Eu depois falo de ti aquele pessoal. Olha que o gordo que manda naquilo gostou de ti. Tens trabalho amanhã? Se não tens avisa. Olha que este paga bem...

Voltando a si.


O sacana. Eu quero é que estes gajos se…(congela)


Cena 2

Entra James com um cigarro na boca e à procura do isqueiro. Procura nos bolsos de cima, depois nos bolsos das calças. Não o encontra. Tira o cigarro da boca e faz como que uma apresentação de Jim.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Afinal o que importa... O Filme - III

Ainda na reminiscência


Vejo olhos enfeitados de ternura.

No escuro a noite é pura. (desviando o pensamento daquela recordação) Só mais um acorde… só mais um acorde e acabo esta letra… (exaltado) só mais um acorde, só mais um acorde, só mais um acorde caralho… (respirando ofegante e depois gritando)
Cabrões de merda. Devem fartar-se de rir das coisas que digo. E o sacana do James sempre com a mesma conversa.

(reproduzindo irritado um discurso de James)

"A música até está gira mas como um todo não funciona pá! E depois não faz sentido. Não há mercado para isso pá. Não percebes que as pessoas gostam de coisa que entrem no ouvido, só isso. Não gostam muito de pensar, gostam de coisa fáceis, de fácil consumo. “No escuro a noite é pura”? Não percebo, pá! Tavas com a neura e saiu-te, não é. A malta jovem não quer saber disso para nada. Porque é que tu não escreves coisas do género, “chuva de Inverno” ou “Verão quente”. Vê lá isso pá. Olha que não posso andar sempre atrás de ti. E olha! Vê se escreves em inglês que eles gostam mais e sempre tens mais hipóteses no mercado internacional. Não é, pá! Eu depois falo de ti aquele pessoal. Olha que o gordo que manda naquilo gostou de ti. Tens trabalho amanhã? Se não tens avisa. Olha que este paga bem..."

Volta a si.

Grande porco. Eu quero é que estes gajos se fff… (congela)

terça-feira, setembro 26, 2006

Continuando com O Filme da tua Vida - II

Estende o vestido no chão e observa-o.

Tinhas vinte anos, eu sete. Acabavas de vender todos os teus discos em vinil que valiam uma fortuna. Tomei banho nessa noite. Vesti a minha melhor camisa e as únicas calças que tinha. Eram onze e meia da noite e tu levaste-me ao Greencherry, um dos sítios mais frequentados de Port Laos. Seis quilómetros a pé. Foi uma sorte termos chegado antes de fechar. Estava praticamente vazio. Sentei-me de frente para a janela. Tu ao balcão pediste para mim, um gelado. Até aos meus sete anos não havia comido um gelado que fosse. Era coisa para gente de boa carteira. Nem sabia por onde começar. “Olha que isso derrete!”, disseste-me enquanto levavas um cigarro aos lábios. Cada colher que eu levava à boca era mais saborosa que a anterior. Havia uma pressa incontornável de provar todas as cores, perceber qual o sabor de cada cor. Uma felicidade enorme. Tu olhavas-me como se eu tivesse acabado de nascer, como se estivesses a pegar-me ao colo. E esqueci-me por momentos de todas as sovas que me deste. Os olhos brilhavam-te. Muitíssimo! Olhaste-me mais uma vez e sorriste-me. Nessa noite fui para casa depois da uma da manhã. Um verdadeiro recorde na altura. Deixaste-me dormir na tua cama, com cobertores e tudo. Disseste-me, - “Cuida bem de ti Jim” e deitaste-te no corredor ao fundo da sala com mais um dos teus clientes habituais. Talvez para pagar o gelado que comi.
Pouco me importa a vida que levavas. Uma mãe é uma mãe. E morreste-me nessa noite ou simplesmente não quiseste acordar… no dia em que eu, pela primeira vez comi um gelado. Foi fácil chamar um médico. O mais difícil foi dizer, -“Sou filho dela, e não tenho mais ninguém.

Silêncio. Pega novamente na guitarra.

Transporta


Rapaz III vai buscar uma cadeira e arrasta-a até ao meio do palco. Senta-se nela.


Rapaz III - Sou uma pessoa agitada. Exalto-me com facilidade.
Tenho de conter-me na maneira como aceito o que as outras pessoas me dizem.
Tenho sempre presente a sensação de que todos me querem mal. Há sempre alguém escondido à espera de uma oportunidade!... Para me seguir até casa, levar-me para um lugar escuro e inacessível onde ninguém me possa encontrar, e aí fazer-me as piores coisas do mundo, coisas horríveis, coisas que só eu possa imaginar.
As paredes têm olhos. Acreditem que têm olhos. Tento ficar sempre alerta não vá uma dessas paredes descobrir tudo sobre mim. As minhas frustrações, a importância que ninguém me dá. Sinto que as paredes me fotografam, que me copiam os mecanismos mentais, as atitudes. (pausa)
(sussurrando) Há dias tentei suicidar-me! Duas vezes em menos de duas horas. Por causa das paredes. Por causa das pessoas. Por causa das minhas frustrações. (pausa)
Hoje mesmo, quando já estava tudo preparado, quando eu tinha a certeza absoluta que ia ser hoje, o meu pai telefonou, extremamente agitado. Tive de atender o telefone pois podia ser a última vez que falávamos. (fingindo falar ao telefone) “Estou sim!?” A princípio fiquei sem perceber o conteúdo do seu discurso. Estava bastante agitado e não parava de me dizer que eu tinha de ser forte, que os próximos momentos seriam de dor, que por isso tínhamos de nos unir, de nos apoiar, que iria precisar de mim mais do que nunca, e eu dele. Disse-me para ter calma embora soubesse que no momento seria difícil aceitar a verdade dos acontecimentos. (pausa)
Congelei. Fiquei sem palavras. Não era possível que ele soubesse da minha intenção. Foi fácil ficar nervoso o que é normal em mim, e em poucas palavras disse-lhe que não estava a perceber nada do que ele tinha dito. Mas não excluí a hipótese de ele saber do que eu tencionava fazer.
Ele repetiu todas aquelas coisas novamente dizendo ainda que a vida é feita de sofrimento, que as pessoas não duram para sempre e que é nesses momentos que temos de ser fortes. Depois ficámos uns minutos sem dizer mais nada. E seguidamente, mesmo que tivesse algo para dizer tive vergonha de mim, e com toda a razão para tê-la
Transpirava exageradamente. A minha respiração acelerada não me permitia dizer absolutamente nada para continuar a conversa. Consegui por instantes ver o meu movimento cardíaco no vulto da camisola. As lágrimas começaram a misturar-se com a transpiração. E tive medo. (acelerando o relato)
Que ignorância a minha. Que falta de coragem. Uma quantidade infindável de coisas para descobrir e eu cansado não sei de quê ou de quem. Só porque é fácil desistir, só porque me é tremendamente difícil dar sem pensar que a cada dia estou a receber.
Depois daquele grande silêncio decidi desculpar-me por todas aquelas atitudes neuróticas, psicóticas e inconscientes. Talvez falando abertamente da minha intenção, inconsciente que fosse, talvez me sentisse com vontade para ver o mundo de outra maneira.
E foi então que percebi que a intenção do telefonema nada tinha que ver comigo, nada tinha de meu, pois mal eu abrira a boca para dar tudo de mim, ele, esse a quem sempre chamei de pai, disse muito calmamente, soluçando, choroso e desgostoso.
“Estou na casa da tua avó (pausa). Já liguei para o hospital... e... Eu... acabei de encontrar a tua mãe no chão da sala. Envenenou-se. Ainda chegou a dizer-me que... Não desligues por favor.” (Respirando compulsivamente à medida que o seu rosto vai ficando encharcado de um enlagrimado cansaço)
Tudo isso se passou há menos de trinta minutos.
Estou mais nervoso do que o habitual.
Encontro-me num impasse.

1 - Levanta-se da cadeira e vai até ao centro do palco.
2 - Faixa 12 de Vim Martens.

Para lá dos teus olhos...


domingo, setembro 17, 2006

O que muda é o sorriso, não a intenção


Willie

Sim, sou eu! O Willie! A fazer exactamente a mesma coisa... que fiz ontem de manhã! E antes de ontem de manhã! E antes de antes de ontem e antes de.. Engraçado! Ía jurar que se hoje não estivesse a fazer isto, já saberia como é não fazer isto. E não mudaria nada! Absolutamente nada. Ou mesmo se o meu nome não fosse Willie eu continuaria a fazer algo como tomar duche, lavar os dentes, pentear-me... desfazer a barba! Vestir-me, despir-me, vestir-me, despir-me... de manhã, todas as manhãs! Poderia tomar o pequeno almoço a meio da tarde ou insistir que o que como é um jantar matinal, mas todas as manhãs, ao olhar-me neste espelho fosse para o que fosse, não deixaria de ver a mesma cara! A cara do Willie! Curioso. Todas as pessoas devem pensar nisto de vez em quando! Ou talvez não! Talvez isto, para mim, já se tenha tornado demasiado maquinal e enfadonho!

Que estupidez! Nem sei porque estou a pensar nisto agora!
Acho-me feio! Não sei! Acho! É claro que às vezes também me acho bonito, porque tudo depende da minha boa disposição e porque é mesmo assim que tudo funciona! Se estamos bem somos inteligentes, compreensivos e até bonitos! Se não... paciência e não há ninguém quem nos ature!

E ela? Ela ! Estou farto de ser o senhor anónimo que envia cartas sem se importar que não tenham resposta.


Ana Lee

Tive um sonho horrível! Que coisa! Prefiro nem me lembrar! E estas olheiras!? Meu Deus!

Uma pessoa deveria poder escolher a cor dos olhos, a cor do cabelo! Deveria poder escolher ser mais ou menos bonita, consoante aquilo que lhe agrada! Aquela história de sermos todos bonitos nem que seja interiormente, é só para nos consolar e para aceitarmos de uma maneira suave todos os defeitos que temos!
Imagino-me com um batom caríssimo, de olhos pintados e com montes de porcarias no rosto. Seria mais bonita? Não sei! Provavelmente ficariam a reparar se seria Chanel ou Cristian Dior em vez de repararem em mim. Afinal de contas é isso o mais importante! Somos o que vestimos, o que usamos, o que possuímos! Essa é sem duvida a nossa beleza! E talvez por isso ele nunca venha a olhar para mim!
Durante este tempo todo não houve um só momento em que não pensasse nele. Não me sai da cabeça! Se ao menos eu fosse um pouco menos insegura, menos... ( olhando-se fixamente e tocando no rosto ) Poderia dizer-lhe alguma coisa hoje se o voltasse a encontrar. “Olá! Eu sou a Ana! Ana Lee! Lee com dois E’s no fim. Que ridículo! Provavelmente ele diria: «Eu sou o Willie”, eu dizia que já sabia, ele perguntava como é que eu sabia e eu estragava logo tudo! ( levanta-se, calça uns chinelos, põe um elástico no cabelo, e sai a correr )


Sofia

Gosto de me ver a chorar! Não digo chorar como as crianças mas assim como estou agora! Só com a cara molhada! Gosto da minha imagem assim, triste! É isto que eu sou e não a Sofia Lee de 23 anos. A que mora no terceiro andar da rua Alta. Parece que as pessoas aqui descobrem mais rapidamente que sou uma pessoa triste, e provavelmente sozinha, do que descobrem que moro na mesma rua que elas e que me chamo Sofia e que tenho 23 anos. É ridículo e algo automasoquista mas não deixa de ser verdade. Sinto-me igual a ontem. Sinto-me sem evolução, sem alteração de estado de espirito! Chego a ter vergonha de mim. Estou farta de fingir que ainda acredito na busca da tal felicidade que dizem chegar para todos! Estou farta! Os outros se quiserem que continuem a fingir. Eles que procurem essa felicidade, e que continuem a desprezar-me por muito tempo. Eu vou continuar a odiá-los ainda mais porque já antes os odiava. (Colocando as mãos na cabeça e olhando-se fixamente no espelho. Pega em algumas cartas ) Se um dia descobrir quem tu és, tu que te esconde por detrás deste “anónimo” para poderes troçar de mim... Sou uma porcaria! Não sirvo para nada! Sou horrível, horrível, horrível!
Tenho de acabar com isto! Tenho de sair desta casa e fazer alguma coisa lá fora!

sábado, setembro 16, 2006

Antes que seja tarde - I


O Filme da Tua Vida

Teatro que cruza o género cómico e dramático, através de elementos sérios e comoventes assim como elementos hilariantes e patéticos.



Personagens: Jim e James

Espaço da acção: Águas furtadas e exterior abstracto.




Acto I

Águas furtadas. Inicio da manhã. Vários caixotes de madeira a servirem de mobília, uma moldura com um retrato num dos caixotes, um vestido num cabide de chão, vários livros espelhados pelo chão.

Cena 1

Jim está no palco com a uma guitarra e começa a interpretar versos da música que está a compor.

Comprei uma noite para amar
Senti as palavras a fugir
Não há ninguém que queira dar
Asas e vento para subir

Vendo pedras mal pintadas
Roubo sonhos para acordar
Mato o pó que me sufoca
Já não sei chorar.

Passei noites a romper pensamentos
E nessas noites tive mais que uma flor
Toquei os olhos de mulheres mal vestidas
Tive beijos sem sabor

As noites são diferentes
O amor só tem imagens
De saliva que é mal gasta
À procura de viagens

Vejo olhos enfeitados de ternura
No escuro a noite é pura.

Pára de tocar. Coloca a guitarra no chão. Tira um cigarro do bolso e leva-o aos lábios mas não o acede. Senta-se no cadeirão.

Jim – No escuro a noite é pura! Algum daqueles gajos sabe o que é que isso significa? Anda um gajo aqui a humilhar-se, a negociar a arte por tostões. Fascistas de merda.

Acende finalmente o cigarro.

Quero lá saber! Nem sequer sou anti-fascista ou anti-capitalista ou anti porra nenhuma. (Fixa a fotografia que está na moldura em cima de uma mesa) O que as pessoas querem é “coisas novas”, novinhas em folha. Quem não as tiver está bem fodido. (Pega na moldura) Não é Sara? Não é isso que nos ensinam e que tu bem aprendeste quando te aproximavas dos carros e dizias, “faço tudo!” (Volta a colocar a moldura no seu lugar)
Quinze anos, uma boa mini-saia e um perfume de nome “bon chance” fazem toda a diferença. E nem é preciso sorrir. Sorrir para quê?


Som de carros a circular. Jim olha para cima e fecha os olhos

“Hei! Você aí. É prostituta como as outras, não é? Então combina-se já aqui o que é que se faz. Dou-lhe um conto. Uma nota de conto e serve-se também um amigo meu que está cá só de passagem. E se não fizer perguntas somos capazes de lhe dar um pouco mais.”

Dirige-se para o vestido que está pendurado no cabide e simula uma conversa a dois.

Era assim que eles falavam contigo.
E tu gostavas. E como gostavas. Havia sempre dinheiro para café e cigarros. Cigarros que eram um banquete, uma refeição, uma razão para acordar…
“Hei! Você aí. É prostituta como as outras, não é?”
Eras linda e gasta!
E durante muito tempo levaste uma vida de merda, uma vida às cegas, de dívidas e violência e mais não sei o quê. E eu nunca fora tão feliz e infeliz como no dia em que tu me morreste.

sexta-feira, setembro 01, 2006

O sorriso de quem é especial não se vê, sente-se.



Não é especial quem quer...
... É-se especial muito antes de o ser, de o notar ou de o glorificar.
Não se pode desejar ser especial, fingir-se que se é...

... E muitos dos que o são, esses os que consideramos especiais, são-no apenas por aceitar a verdade de que o não são.

Na pressa das palavras

Em sintonia acende o cigarro e senta-se no vazio, esperando que algo a ampare.
Nesse momento o Corpo IV apressa-se a oferecer-lhe o seu joelho como se fosse uma cadeira.

A Rapariga I descai o corpo para trás e o Corpo II apressa-se a suporta-la, como se fosse ele próprio as costas de uma cadeira.
Ela fica como que num divã, a bafar o cigarro, em pose elegantíssima.

Rapariga I – Segurai-me com firmeza cavalheiros, pois que sou gentil donzela e rara preciosidade.

Corpo IV – (impressionado) Não duvido, bela senhora. Bem vejo quão grande é a beleza que vossa feição suporta. E por quem sois, ou por quem é vosso coração?

Rapariga I – Ousais demandar sobre um coração que desconheceis. Sois destemido. E cuidais que vos hei-de responder?

Corpo II – Destemido aqui me tendes donzela e senhora. Nada receeis pois que me encontro a vosso lado e a vossos pés. Ser-vos-ei nobre no quanto desejardes, justo e disponível. É por mim vosso coração, acredito.

Corpo IV – Que absurdo meu pobre sonhador! A mim se destina a contemplação de tão bela graciosidade. Que não vos iluda vossa inutilidade. Sois banal, de rejeição.

Corpo II – Que me dizes? Tende cuidado. Medi bem as palavras que me atiras. Com um só gesto sou capaz de vos eliminar.

Corpo IV - Vós e um exercito suponho. Ou melhor! Nem mesmo um exercito e quanto a vós... Vá desamparai-me o espaço de conquista. Não vedes que me importunas?

Corpo II – Ai de mim que me atiro sobre vós. Usais de tão seguras palavras e não cuidais do perigo que vos espera.

Corpo IV – Nobre donzela e senhora. Se me permitis acabarei já de seguida com este estafermo que me molesta.

Corpo II – Atrevei-vos se a coragem não vos falta. Mas advirto-vos que deste corpo não levareis se não pancada. Atrevei-vos então.

Rapariga I – Calai-vos por favor. É por mim que lutais? De onde vos virá aos dois tal ilusão? Não vedes o quanto vos desprezo?

Corpo II – Todavia nada entendo de desprezo. Meu coração é uma rosa para vós.

Corpo IV – E Meu coração um jardim!

Rapariga I - Pois se é vosso coração um jardim colhei-me lírios, cravos e açucenas.

Corpo IV - Lírios, cravos e açucenas?

Corpo II - (rindo) Agora mesmo vos dareis conta do embusteiro que aqui tendes.

Rapariga I – Pois sim darei. E vós que tendes um coração em forma de rosa, podeis ao menos oferecer-me pétalas, e que não estejam murchas, peço-vos. (rindo)

Corpo II - Zombais de mim por instantes?

Rapariga I - Ao menos sempre me divertis nesta pasmaceira.

Corpo IV – E isso quereis? Pois se divertimento quereis aqui me tendes. Mandai-me contar um chiste ou uma graça sobre este burlão. Hei-de fazer-vos rir que nem um bobo.

Corpo II - Pobre ignorante. Bem vi que nada possuis de romântico. Para bobo tereis feição, não duvido. Vá. Diverti-me também a mim que me aborreço.

Corpo IV - (furioso) Eu seja cão! Estais a pedi-las!

Rapariga I - Ah! Já começo a cansar-me de tão pouco juízo de tendes vós os dois. Quero ir-me.

Corpo IV – Não antes sem um beijo, peço-vos!

Corpo II – Um beijo me bastaria para…

terça-feira, agosto 01, 2006

A Verdade das coisas, onde está?

- Cena 9

1 - A música agora é só instrumental.
2 - Os corpos paralisam. Um dos corpos sai e passeia-se elegantemente.
3 - Os seus passos são lentos, alternados entre perna esquerda e perna direita.

Corpo I

A esta hora que passa.
No exacto momento…
Agora mesmo…
Esta a acontecer…
A esta hora que passa, passam milhares de impulsos pelo corpo…
Uma infinidade de pulsões para além do corpo…
E é físico… sente-se…
E no entanto tudo se absorve num corpo interior…
É o que se quer… já… agora…
Pode ser a imaginação de tudo o que passa…
Neste momento que passa estão milhares de pessoas viradas para dentro do seu corpo, na procura do que passa…
A esta hora que se transporta há pessoas que se olham em ruas… em transportes e filas de espera…
Amando-se em silêncios ou em sonhos… que são o que passa…
Agora mesmo há pessoas que se tocam… levemente… com a cabeça… imaginando lábios que se tocam… beijos que se tocam…
E sonham no momento que passa… edificando o comportamento… erótico… compulsivo, a vontade de amar, de destruir, de matar, de morrer, de gostar…
Tudo passa pela cabeça que é mente ou arrecadação de segredos íntimos.
Mas nada do que passa, nada fora do que acontece se mostrará forma… ficará só pensamento, ninguém saberá o que passa, ou quem passa, se existente… Tudo se transporta em segredo.
Todos os corpos que passam e que se afastam transportam o suor horrível e delicioso com que se conquistam todas as simpatias.
Ai está o cheiro podre e irresistível de todas as relações corporais… todas as atracões são nojentas e necessárias neste panorama…
Há corpos abundantes de testosterona… a progesterona levita em cada encosto de passadeira… Mas tudo se procura em outro nível… O dono do castelo… a dama de ancas largas… a morte como solução ou alternativa ao sofrimento, quando na verdade tudo se manifesta a um palmo dos olhos nesta hora que passa… neste exacto momento de correrias…


- Cena 10

1 - Os corpos voltam à posição inicial quando a vós entra novamente na música (min 06:35).
2 - A bailarina surge mas agora como se estivesse à procura de alguma coisa ou de alguém.
3 – Fixa o corpo que está no meio do palco e aproxima-se dele ficando paralisada durante alguns instantes.
4 – Abraço-o impulsivamente e mantém-se nessa posição.
5 – Os restantes corpos saem do palco.
6 – Quando ficam a sós, a bailarina leva o seu corpo para o chão suavemente, e sem nunca deixar de o Corpo arrasta-o para ela.
7 – O Corpo fica em posição de prancha por cima da bailarina e nesse momento a musica acaba.
8 – O Corpo e a bailarina levantam-se e fixam-se profundamente.
9 – Muito lentamente o Corpo dirige os seus lábios até à bailarina, arranca dela um beijo ternurento e endireita novamente o corpo.
10 – A bailarina recebe o estímulo do beijo e solta um grito.
11 – O Corpo apressasse a colar a sua mão na boca e diz-lhe:

Corpo I – Chiu!!!

12 – E muito lentamente abandona o palco. Ela segue-o hipnotizada.